Cuidados

Pesquisa revela que alimentação de crianças influencia relação com os pais

Uma pesquisa mostra que as dificuldades que aparecem nas refeições podem envenenar a relação.

Atualizada em 27/03/2022 às 12h22

De um lado, pais ávidos – na verdade, alguns desesperados – para ver seus filhos comer direito. Do outro, crianças que fogem de frutas, verduras e variedade à mesa. Não é raro que essa relação caminhe para uma situação carregada de estresse e frustração. A hora da refeição deveria ser uma oportunidade para conversar com o filho e saber como foi o dia dele, mas, por vezes, torna-se um momento caótico, foco de discussão em família. Uma pesquisa obtida com exclusividade por ÉPOCA, realizada pela Ipsos a pedido da empresa americana Abbott com 984 mães de todas as regiões brasileiras, mostrou que 51% das crianças têm alguma dificuldade para comer. Sete em cada dez mães acreditam que isso atrapalha a relação com os filhos. Foram pesquisadas famílias com crianças entre 1 e 10 anos, com maioria entre 3 e 7 anos. “Nutrir envolve uma troca de afinidades”, afirma Fabio Ancona Lopez, pediatra e nutrólogo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria. “Preocupar-se com a alimentação do filho é uma forma de expressar amor. Quando o filho não come, algumas mães naturalmente se sentem rejeitadas.”

O pediatra americano Benny Kerzner, professor da Escola de Medicina e Ciências da Saúde George Washington, nos Estados Unidos, conduziu pesquisas específicas sobre o impacto das dificuldades alimentares no relacionamento entre mãe e filhos em diversos países. Kerzner cita um estudo que acompanhou, por vídeo, como as mães alimentavam os filhos e como brincavam com eles depois. Os pesquisadores perceberam que, nas casas onde havia mais tensão no momento das refeições, a interação entre mães e filhos após aquele momento era bem menor. Elas não abraçavam as crianças. Com o tempo, afirma Kerzner, esse distanciamento pode se agravar. “Quanto mais conflituoso o momento da refeição, maiores as chances de complicações aparecerem e mais difícil será o futuro dessa criança”, afirma. “Não estou dizendo que vá acontecer com todas, mas são maiores as chances de alguma criança manifestar problemas de comportamento no futuro, como ficar mais violenta.”

A gaúcha Cristina Sampaio Teixeira, de 37 anos, de São Paulo, percebeu o peso da alimentação em sua relação com os filhos depois que Victor, de 5 anos, e Tomas, de 3, começaram a evitar alimentos que antes comiam bem. “Eles aceitavam de tudo até os 2 anos”, diz ela. Quando as recusas com o primeiro filho aumentaram, ela combinou que o premiaria caso ele comesse tudo o que estava no prato. A experiência não passou de três semanas. “Era insustentável trocar comida por presentes.” Cristina percebeu que as discussões com as crianças geravam aborrecimento e rancor na família.

Muitos pediatras e nutricionistas acreditam que mais estudos são necessários para determinar como as dificuldades na alimentação podem afetar o futuro da criança. Todos concordam, porém, que refeições caóticas são prejudiciais. É papel dos pais educar os filhos, colocando limites nos horários para comer e nas opções de alimento que entram na casa. Fazer as refeições num clima de tensão permanente pode ter impactos negativos na forma como elas se relacionam com o alimento e mesmo em sua autoestima. O risco é que, ao perceber a mudança de clima familiar em função de como se comporta diante do prato, a criança tenha a sensação de que é responsável pelo bem-estar da família. “Quando tem essa percepção e não consegue corresponder, fica com a impressão de que nunca conseguirá satisfazer os pais”, diz a pediatra Fabíola Suano, do serviço de nutrologia do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André, na Grande São Paulo.

Ninguém ousaria dizer que é fácil manter a serenidade diante de uma criança que insiste em não comer. “Em certa medida, quando não conseguem alimentar o filho da forma como consideram ideal, os pais sentem que não são tão bons quanto gostariam. Fica a sensação de que falharam”, afirma Audrey Setton Lopes de Souza, psicanalista da Universidade de São Paulo (USP). Com esse sentimento, é difícil não transformar a dificuldade do filho em comer num martírio pessoal. Mas é importante não demonstrar tanta ansiedade na hora da refeição. “A angústia que os pais sentem é um dos causadores do desequilíbrio na relação da criança com a comida”, diz Audrey. “Se os pais não conseguem fazer as refeições em clima amistoso, vale pedir para que alguém assuma esse momento por eles até que se sintam mais tranquilos.” Pode ser um avô, um tio, a babá ou até a escola em período integral. Os pais podem procurar especialistas em nutrição infantil, psicólogos ou mesmo empresas especializadas que fazem atendimento em domicílio para reorganizar a alimentação familiar.

Foi o que fez a gaúcha Cristina. Há um ano, com a ajuda de uma nutricionista, a alimentação de todos foi modificada. O que fez Victor, seu filho mais velho, comer melhor não foi apenas a mudança no cardápio. Foi a maneira como o problema passou a ser abordado. Quando ele não queria comer, era respeitado. Os pais passaram a oferecer também mais variedade à mesa – e adotaram a confiança como estratégia. “Digo para ele o seguinte: ‘Filho, pode provar, confia em mim’, e ele come. Espinafre foi uma de nossas mais recentes conquistas”, afirma.

Como não existe uma fórmula que funcione com todas as crianças, com o caçula Tomas os progressos são mais lentos. Por enquanto, ele só come arroz, feijão, carne moída e purê de batata. Quando a família viaja pelo Brasil, Cristina leva a comida pronta, separada em potes, numa bolsa térmica. Nas viagens internacionais, escolhe um apartamento que tenha cozinha e, assim que desembarca, vai direto para o supermercado comprar o que ele come.

A formação dos hábitos alimentares começa bem antes do que se imagina. Alguns estudos mostram que a alimentação da mulher antes de engravidar pode influenciar o paladar do bebê. Os trabalhos científicos mais recentes revelaram que tanto a genética quanto a comida durante a gestação ajudam a formar o paladar do feto – ele sente diferentes sabores pelo líquido amniótico. E a amamentação também tem um papel fundamental. “Os bebês exclusivamente amamentados no peito provam diferentes gostos no leite, resultado da alimentação da mãe”, diz a pediatra Fabíola Suano. O bebê alimentado por fórmula conhece apenas um tipo de gosto. Isso poderia provocar uma predileção por uma monotonia de sabores.

A relação com a comida – e a formação do paladar – acontece nos dois primeiros anos da criança. Por isso é tão importante seguir as recomendações de como introduzir os alimentos. Para começar, o primeiro alimento que o bebê provará não tem de ser o suco de laranja-lima, como recomendam alguns pediatras. Não precisa nem ser uma fruta. Muitas dessas regras, passadas de geração em geração, não estão embasadas em conhecimentos teóricos, afirma Fabíola Suano, mas em costumes populares. O mais importante é oferecer a maior variedade de texturas, sabores e cores desde a primeira papinha (que deve vir depois dos seis meses de amamentação exclusiva).

Fabiana Ferreira, de 36 anos, que trabalha com atendimento ao cliente em São Paulo, sempre seguiu essa recomendação em casa. Ex-vegetariana (passou a comer carne depois da primeira gravidez), acreditou que encontrara o caminho certo porque o filho Ricardo, de 7 anos, come “de tudo” desde bebê. Repetiu o esquema com o caçula, Henrique, hoje com 4. Quando bebê, ele cuspia os alimentos de que não gostava. Hoje, nas palavras da mãe, “odeia” verduras e a maioria dos legumes. Como duas crianças que receberam a mesma alimentação, criadas da mesma maneira, podem ter paladares tão diferentes?

Além do ambiente e da educação da criança, o paladar é uma característica individual, como os traços do rosto ou a impressão digital. Mas essa é apenas uma das explicações. No caso de Henrique, há outro fator claro: a idade. A partir dos 3 anos, é comum que as crianças fiquem mais seletivas (e não queiram provar novidades). Na maior parte dos casos, esse tipo de comportamento regride naturalmente.

Se a criança comia bem e começou a apresentar algumas dificuldades, o primeiro cuidado é afastar qualquer problema médico. Se ela mantém o padrão de crescimento normal e está saudável, é preciso avaliar os hábitos alimentares, a rotina e como são as refeições daquela família. Uma revisão de estudos recente feita pela Universidade do Estado de Nova Jersey, nos EUA, mostrou que comer com os pais à mesa melhora os hábitos alimentares das crianças. Outra pesquisa, francesa, realizada no ano passado com crianças de 5 a 8 anos, revelou que a expressão involuntária dos pais diante de uma comida – principalmente hortaliças e legumes – é mais importante que dizer “come, é gostoso”.

A gerente de sites Vanessa Serra, de 37 anos, de São Paulo, tentou todas as táticas possíveis para que Isabel, de 2 anos e 8 meses, comesse. “Quanto mais tentava, mais birra ela fazia. Quando dizia para ela comer para ficar grande, ela respondia que gostava de ser pequena”, diz. Vanessa conta que fazia todo tipo de “macaquice” e chegou a chorar de desespero por não conseguir fazê-la comer. Agora, ninguém mais insiste. “Digo que faço cara de paisagem, não demonstro meu sofrimento. E como de tudo na frente dela, feliz. Isabel come o que tiver vontade”, diz Vanessa. Os pais não podem obrigar os filhos a comer. Mas podem cuidar para que a hora da refeição seja um momento de prazer para a família. E dizer mais com seu próprio prato do que com qualquer palavra.

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