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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Tempo de Perder Tempo

O relógio não perdoa, o algoritmo não espera, e a produtividade tornou-se a régua com a qual medimos nossa relevância no mundo.

Kécio Rabelo

Atualizada em 17/05/2025 às 14h52

Vivemos apressadamente. O relógio não perdoa, o algoritmo não espera, e a produtividade tornou-se a régua com a qual medimos nossa relevância no mundo. Nesse cenário de metas, notificações e agendas congestionadas, perdemos de vista algo essencial: a presença. E é por isso que, talvez paradoxalmente, seja urgente dizer: é tempo de perder tempo.

Perder tempo, aqui, não significa mergulhar na ociosidade vazia, mas oferecer tempo ao outro e a nós mesmos. Escutar sem olhar para o celular. Conversar sem pensar na próxima tarefa. Sentar, sem culpa, com alguém e simplesmente estar. É nesses gestos simples e desacelerados que se abre o espaço para a escuta verdadeira, aquela que acolhe, que dá existência à palavra do outro e devolve sentido à própria vida.

Ser ouvido é uma necessidade humana. Não apenas tolerado em sua fala, mas escutado com genuína atenção. Existe um tipo de cura que acontece quando alguém nos escuta com os olhos, com o corpo inteiro, sem pressa de responder ou concluir. Quando somos ouvidos, sentimos que existimos. E, quando escutamos de verdade, reconhecemos no outro algo que também é nosso. Na narrativa alheia, identificamos fragmentos da nossa própria história. Ao dar voz ao outro, recuperamos a nossa. Nesse processo simples — e sem técnicas terapêuticas —, somos capazes de descascar nossa vida, nossos medos, traumas e sonhos, sem receio de julgamentos. Numa escuta atenta, o coração se prende. E, às vezes, permanece.

Nessa lógica da escuta mútua, o encontro deixa de ser apenas convivência e passa a ser comunhão. Mas, para isso, é preciso tempo. Tempo que parece sempre escasso, mas que, se não for ofertado à vida e às relações, pouco vale quando gasto com metas, números e performances. É preciso desacelerar para aprofundar. A correria nos torna eficientes, mas é a pausa que nos humaniza.

Ouvir é mais do que um ato de generosidade ou de educação: é um exercício de reconhecimento. Reconhecer no outro um universo inteiro, cheio de dores, alegrias, memórias e esperanças. E isso só é possível quando ousamos olhar nos olhos, silenciar as distrações e dedicar presença real. Em tempos de hiperconectividade, a verdadeira conexão se dá no olhar atento, no gesto compassivo, na escuta comprometida, no abraço dado sem tocar a pele.

É também nesse “perder tempo” que fortalecemos nossa identidade. Pois é na partilha, no diálogo, no confronto amoroso de ideias e experiências que ampliamos o olhar sobre quem somos e sobre o mundo que habitamos. Somos feitos de relações, e toda relação precisa de tempo para florescer.

Em meio às pressões do mundo moderno — com seus prazos, exigências e ruídos constantes —, talvez o gesto mais revolucionário que possamos realizar seja este: parar. Parar para ouvir. Parar para estar. Parar para cuidar. E, assim, aos poucos, permitir que a humanidade reapareça em cada encontro verdadeiro. Parar para deixar aflorar em nós a força da vida. A beleza da pausa, que sutilmente pode se tornar prenúncio de eternidade.

No sofá ao lado, de onde escrevo estas linhas, enquanto aguardo a hora de ser atendido para um exame, alguém, irritado com a demora, acaba de dizer: “Já esperei demais. Não tenho todo o tempo do mundo.” Levantou-se e foi embora. É ele de novo; sempre o tempo,  ou a falta dele,  a impor reações.

Na recepção da existência, onde iguais se encontram como estranhos, viverá feliz quem, disposto estiver, a ter tempo de perder tempo.

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