Memórias da Pandemia
Em 2021, organizei, juntamente com a professora Letícia Rodrigues, a Coletânea Memórias da Pandemia, que reúne contos, crônicas e poemas de alunos do Centro de Ensino Santa Tereza
A leitura e a escrita são chaves para outros mundos, tempos e experiências. Nelas encontramos um alívio para tempos difíceis e uma oportunidade para experimentar outras vivências e olhares, como uma forma de humanização e empatia. Por acreditar no poder que a literatura possui para revolucionar histórias, em 2021, organizei, juntamente com a professora Letícia Rodrigues, o e-book Memórias da Pandemia, uma coletânea de contos, crônicas e poemas, fruto de um projeto didático homônimo idealizado na disciplina de estágio supervisionado, sob a orientação da professora mestre Mary Joice Paranaguá Rios Rodrigues, tendo como principal objetivo valorizar a escrita autoral dos gêneros literários conto, crônica e poema produzidos a partir de relatos de experiência de estudantes da rede pública estadual de ensino, durante a pandemia da COVID-19.
Vale ressaltar que o mencionado projeto foi aplicado na turma 901 – 9° ano do ensino fundamental – do Centro de Ensino Santa Tereza, no formato remoto, respeitando, assim, as medidas de distanciamento social adotadas no período pandêmico. Desse modo, realizamos primeiramente um momento teórico, no qual explanamos, através do uso de metodologias ativas, os gêneros textuais conto, crônica e poema, bem como fizemos a leitura dos seus respectivos exemplos, a fim de, posteriormente, propor a elaboração de um livro, no formato digital, composto por textos literários de autoria dos referidos alunos. Com o intuito de investigar os processos de leitura e produção textual no ensino fundamental, sobretudo no contexto pandêmico no qual estivemos inseridos, o presente ensaio tem como objetivo propor uma leitura do e-book Memórias da Pandemia (2021), a fim de analisar a escrita e o seu papel em tempos de crise.
No ano de 2020, teve início um período, que sem dúvida, ficará marcado na história da humanidade como um momento de isolamento, dor e diversas perdas e adaptações para aqueles que sobreviveram: a pandemia da COVID-19. Em um curto espaço de tempo, a rotina de todos do planeta terra foi alterada drasticamente, passamos a utilizar máscaras e álcool em gel, a fim de evitar o contágio e a possível propagação desse vírus. Nunca antes, se falou tanto sobre a importância de algo tão simples como a higiene, nem a respeito da valorização da vida e do outro, chega a ser “estranho pensar que aprendemos ainda mais o sentido de coletividade e empatia, com um vírus. Afinal, é isso que tem nos mantido vivos!” (MONTELES, 2021, p. 27).
Algumas medidas foram tomadas com o intuito de controlar, e possivelmente, erradicar o coronavírus, tais como o isolamento social, a proibição de aglomerações em locais públicos e privados e o fechamento, ou restrição de funcionamento, de serviços não essenciais, isto é, somente hospitais, farmácias e estabelecimentos de gêneros alimentícios poderiam continuar funcionando livremente, seguindo as medidas de distanciamento, realizando a aferição de temperatura e tendo o uso obrigatório de máscaras e álcool em gel. Nesse ínterim, as escolas tiveram as suas portas fechadas e, assim, surgiu o ensino remoto.
Chamamos ensino remoto e não educação a distância (EaD), porque é uma ação emergencial, são cursos presenciais, que, devido aos impedimentos impostos pela fácil disseminação do coronavírus, impedem os estabelecimentos de ensino de manterem suas atividades presenciais. O ensino remoto precisou ser feito sem planejamento prévio, sem um ambiente virtual de aprendizagem escolhido com cautela, sem que os professores tivessem tempo de se preparar, de produzir e selecionar materiais e estratégias de ensino adequadas para atividades online. E sem que os(as) alunos(as) estivessem previamente de acordo com o desenvolvimento de atividades em outros ambientes que não fossem a escola e estivessem bem preparados para isso (COSCARELLI, 2020, p. 15).
Nesse sentido, notamos o quanto estávamos despreparados para um momento como esse, isso porque nosso sistema educacional utilizava escassos recursos tecnológicos no processo de ensino-aprendizagem presencial, ou, simplesmente, não era feito o uso de nenhum equipamento de multimídia nas salas de aula. Nossa educação estava perdida nas areias do tempo, entregue ao tradicionalismo e à repetição de conteúdos vazios de significado. Outro problema enfrentado foi a desigualdade social, pois nem todos os alunos e alunas dispunham de condições favoráveis para o ensino remoto, a saber, um ambiente tranquilo e silencioso, aparatos tecnológicos (celular, notebook, etc.) e uma boa conexão com a internet.
Frente a tamanho despreparo e ausência de recursos, o ensino remoto, sobretudo o seu início, foi marcado por altos níveis de evasão escolar e uma grande resistência à tecnologia, por parte dos professores tradicionais, que erroneamente acreditavam ser possível reproduzir seus materiais retrógrados, antes utilizados presencialmente, no modelo remoto, sem qualquer tipo de adaptação. O resultado disso foi desastroso, muitos estudantes abandonaram a escola. A fim de contornar esse cenário caótico, tem-se investido em uma constante formação continuada do corpo docente, especialmente no que diz respeito às metodologias ativas e ao uso de ferramentas digitais nesse novo formato de escola.
Vale a pena ressaltar que a literatura possibilita um diálogo com outros mundos e um amplo repertório de histórias tanto ficcionais, quanto baseadas em fatos da realidade. Desse modo, mesmo sendo escritos há décadas, diversos livros dialogam com a contemporaneidade, por abordarem questões atemporais. Além disso, a literatura tem um papel importante ao longo do processo de desenvolvimento das habilidades humanas, tais como a criatividade, a capacidade de organização das ideias ou o aprimoramento do senso crítico. Em vista disso, a
literatura não tem a pretensão de curar as dores do mundo; mas certamente ilumina caminhos. Não nos consola nem serve de lição para nada; porém, por meio das histórias, nos deparamos com dramas e tragédias que também são os nossos e, assim, nesse exercício de empatia, nos tornamos mais humanos (RUFFATO, 2020).
Por isso, muito além de uma ferramenta para o aperfeiçoamento de habilidades para fins pessoais e profissionais, a literatura nos torna mais sábios, sensíveis às dores alheias e críticos, pois, através dela podemos analisar os problemas da vida e criar estratégias para, enfim, saná-los. Dessa maneira, a literatura possibilita o desenvolvimento do senso de humanidade na sociedade leitora (CANDIDO, 1995). De fato, o texto literário não possui uma função estanque e definida por aquele que escreve, são os leitores, que ao entrarem em contato com a obra, constroem suas funções e significados, preenchendo as lacunas que são deixadas, propositadamente, ao longo da obra. Assim, são realizadas leituras diversas, mas todas são possíveis, pois cada uma é condicionada à história de vida do leitor, às suas experiências e (des)afetos.
Apesar disso, as escolas, em sua maioria, tratam estes textos como meros objetos avaliativos, impossibilitando, dessa forma, que os alunos questionem, tracem comparações com outras expressões artísticas – como cinema, teatro, música, entre outras – ou, simplesmente, se divirtam e desenvolvam o senso crítico (tão escasso em nossa sociedade) diante deste objeto tão rico. Tal pedagogia adotada, infelizmente, resulta em sujeitos que pouco dialogam, embora estejam inseridos em um tempo no qual as tecnologias da comunicação estão em constante avanço, e, consequentemente, esse individualismo não permite que o ser humano observe e reflita sobre a situação e fragilidades do outro, pensando unicamente em si mesmo.
A literatura é, pois, um caminho para a construção de saberes, interpretações e questionamentos sobre a vida. Por intermédio dela o leitor cria e estabelece contato com novos horizontes e olhares sobre o mundo que o cerca, e, dessa forma, torna-se mais apto e consciente para interagir em sociedade, não mais como um sujeito passivo, negligente e apático, mas como um cidadão crítico, capaz de modificar as mazelas que observa ao seu redor, com empatia e humanidade.
É preciso tratar o texto não como objeto de análise puramente gramatical, mas permitir que o leitor/aluno atribua significados a ele. Além disso, o professor deve sempre estar atento ao selecionar textos, pois eles precisam coadunar com o contexto no qual os alunos estão inseridos, para que haja uma maior compreensão e interação, ao longo das aulas. Nesse contexto de aprendizagem, surge o que Street (2014) intitula “eventos de letramentos”, isso porque não existe apenas um modelo único e estável. São múltiplas as situações em que os indivíduos estão inseridos, exigindo deles os mais variados conhecimentos. Assim, sobreleva-se o letramento literário, que de acordo com os estudos de Coenga (2010, p. 55), consiste no “conjunto de práticas sociais que usam a escrita literária, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”.
O letramento literário é, portanto, uma prática social. Logo deve ser uma realização da escola, em virtude do seu caráter formador, que visa desenvolver indivíduos críticos e ativos na sociedade. Por isso, o trabalho realizado no Centro de Ensino Santa Teresa, teve como aporte teórico os estudos acerca do letramento literário, não apenas a título de mera interpretação textual, mas para proporcionar aos alunos uma visão mais ampla a respeito do texto literário, ao compreendê-lo como um objeto de múltiplos significados possíveis.
O projeto Memórias da Pandemia foi subdividido em dois momentos, um teórico e outro prático. Primeiramente, foram ministradas quatro aulas expositivas e dialogadas, através do Google Meet, sobre os gêneros literários conto, crônica e poema, nas quais os alunos, a partir de seus conhecimentos prévios, construíram novos saberes por intermédio das discussões, exemplos e interpretações de textos variados, que descreviam lírica e poeticamente o momento de crise, no qual estivemos inseridos, a pandemia da COVID-19. Os alunos se mostraram muito participativos e deram sua contribuição acerca dos textos que trouxemos para a aula, sempre relacionando a situação da pandemia – o isolamento social – com as descrições dos autores sobre a solidão e angústias vivenciadas nesse momento lúgubre.
Ao final das aulas, foram disponibilizados links com atividades de fixação, no formato de quiz, idealizado no site Wordwall, nos quais haviam perguntas relacionadas aos gêneros textuais em estudo. Além disso, produzimos videoaulas animadas, no site Powtoon, com o intuito de revisar os principais conteúdos aprendidos durante o projeto. Os alunos ficaram muito felizes com a utilização desses recursos didáticos diferenciados, e, sem dúvida, esse foi um incentivo para que eles continuassem atentos, do início ao fim das aulas. Diante disso, destacamos a importância do planejamento prévio, para que haja interação, interesse e uma aprendizagem significativa.
No segundo momento, fizemos uma proposta de elaboração de um livro, no formato digital, composto por contos, crônicas e poemas de autoria dos referidos alunos, com a temática da pandemia. Ao todo, foram recebidos através da rede social WhatsApp, 15 textos entregues dentro do prazo estabelecido. Assim, obtivemos como produto resultante do nosso projeto o e-book Memórias da Pandemia (2021), que trata-se de uma produção independente, sem vínculos editoriais, por isso realizamos todo o trabalho de revisão e diagramação, através do aplicativo Canva. O processo de revisão dos textos foi mínimo, pois foi preferível não alterar a linguagem utilizada pelos alunos, por se tratam de textos com marcas da oralidade, que permitem ao leitor a sensação de proximidade ao tempo e espaço no qual essas histórias estão sendo contadas, reforçando, assim, o tom intimista dos alunos e alunas.
Como já foi mencionado anteriormente, existem práticas pautadas no ensino tradicional que devem ter ultrapassadas, para que os estudantes tornem-se sujeitos ativos no processo de ensino-aprendizagem, entre elas podemos citar a produção textual, que, erroneamente, tente a ser o ato de
propor textos para ninguém ler serve somente para demonstrar que o estudante sabe e, assim, o professor cumpre sua função apenas pela correção do que está certo ou errado. A articulação dos saberes prévios dos estudantes diante da proposta da escola e do planejamento semestral proposto com base na educação popular - que insere os sujeitos na lógica horizontal de ensino aprendizagem -, demonstrou que os textos escritos com destinatários reais passam ao autor a preocupação com a correção, a adequação e a pertinência do texto para quem lê, além de si mesmo (SILVA, 2017, p.13).
Desse modo, textos pautados em situações reais instigam o aluno a produzir com maior qualidade e cuidado, pois ele terá sempre em vista que aquela escrita será lida por outro alguém. Além disso, trata-se de uma forma eficaz para a utilização dos conhecimentos prévios, que esse estudante já possui, visto que teoria e prática serão aliadas, e, consequentemente, teremos uma aprendizagem significativa. Compreendemos que a autoria, de fato, leva à autonomia, no instante em que o discente assume um papel de destaque, pois protagonista
é o indivíduo que consegue compreender um texto por si só, fazendo conexões com outros textos existentes e Atualizando essas novas informações, agregando conhecimentos a eles, ou seja, promovendo seu próprio protagonismo na medida em que atua sobre uma determinada informação, modificando-a de acordo com seus próprios conhecimentos (BRANDÃO, 2014, p. 39).
De acordo com tais pressupostos, o projeto Memórias da Pandemia estimulou a escrita autoral, a fim de estimular a autonomia dos(as) alunos(as), no instante em que colocou-os em um lugar de protagonismo, não somente de seus textos, mas também da própria vida. Notamos que a proposta de produção textual só teve o seu objetivo alcançado, pois utilizamos uma situação real – um relato de experiência da pandemia, no formato de conto, crônica ou poema –, com o intuito de organizar uma coletânea com esses textos. Por isso, o projeto foi acolhido pelos estudantes, família e escola, por se tratar de uma representação do atual momento histórico e um alívio para os alunos-escritores e para os leitores, que se identificaram com cada linha do e-book.
Portanto, o projeto aqui apresentado teve um importante impacto para o C. E. Santa Tereza, alunos e familiares, mas também para a sociedade em geral, por estabelecer um vínculo entre a escola e a comunidade, ao retratar a temática do atual momento sócio-histórico, a pandemia da COVID-19, através de contos, crônicas e poemas que compuseram a coletânea Memórias da Pandemia, que tem sido lida e divulgada por todo o país, emocionando novos leitores, que sentem-se representados nesses textos, por tratarem de temas como solidão, perdas, saudade, mas, sobretudo, esperança de que esse momento tenebroso que enfrentamos.
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, Diserre Marques. As tecnologias de informação e comunicação como ferramentas auxiliares na produção textual: um estudo de caso na educação básica. Campos dos Goytacazes, RJ, 2014.
CANDIDO, Antonio. O direito a literatura; O esquema de machado de Assis. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
COENGA, Rosemar (Org.). Leitura e letramento literário: diálogos. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato, 2010.
COSCARELLI, Carla Viana. Ensino de língua: surtos durante a pandemia. In: RIBEIRO, Ana Elisa. VECCHIO, Pollyanna de Mattos Moura. Tecnologias digitais e escola [recurso eletrônico]: reflexões no projeto aula aberta durante a pandemia. - 1. ed. - São Paulo: Parábola, 2020.
MONTELES, Sara Vitória Cunha. Quinze. In: VELOSO, Gabriela Lages. RODRIGUES, Letícia Rodrigues. Memórias da Pandemia: coletânea de contos, crônicas e poemas. 1 ed. São Luís, 2021. Disponível em: <https://cutt.ly/Gcsbpak>. Acesso em: 04/12/24.
RUFFATO, Luiz. Literatura em tempos de pandemia. Disponível em: < https://www.itaucultural.org.br/secoes/noticias/literatura-em-tempos-de-pandemia>. Acesso em: 04/12/24.
SILVA, Carine Lemos da. A escrita autoral como ferramenta para o desenvolvimento da autonomia e do protagonismo dos estudantes da EJA. In: Revista Escritos e Escritas na EJA, N. 7, 2017.1.
STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. 1o ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.
VELOSO, Gabriela Lages. RODRIGUES, Letícia Rodrigues. Memórias da Pandemia: coletânea de contos, crônicas e poemas. 1 ed. São Luís, 2021. Disponível em: <https://cutt.ly/Gcsbpak>. Acesso em: 04/12/24.
Saiba Mais
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.