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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Passagens

“A saudade a morte não leva, não traz. Saudade só sente quem descobriu o amor. Mas, se é preciso se despedir, vá em paz. Aqui fico bem, na presença de sua ausência, na companhia do pé de ipê amarelo, onde, nos dias de sol, te sinto chegar.”

Kécio Rabelo

Foi um suspiro difícil. Passava das dezesseis horas, o sol se escondia costumeiro atrás do ipê amarelo plantado no quintal. Na varanda da casa, apenas uma lamparina de chama teimosa. Ao lado, uma cadeira vazia denunciava a ausência. Ouve-se uma voz rouca e cansada vinda do quarto, em tom de prece, num diálogo difícil de ser entendido. Dona Zélia, após mais de sessenta anos morando ali, ouvia ao lado seu marido pronunciando as últimas palavras de despedida, sem, contudo, poder participar daquele momento, visto sua frágil condição de saúde. Alguém abre a porta e, sem muita cerimônia, sentencia:

— Dona Zélia, ele se foi.

Um silêncio profundo toma o quarto, enquanto o olhar de dona Zélia se volta para a janela. Lá fora, o sol exibe seus últimos feixes de luz. É noite e o luto domina a cena.

Ao lado do caixão coberto de roxo, Zélia debulha as contas de um velho rosário de pérolas, alternando entre as Ave-Marias, lamentos e lembranças do companheiro de vida. De vestido preto e semblante de choro, entra Laurice, uma velha amiga e vizinha de dona Zélia, com a qual sempre pôde contar. Ali, ao lado do corpo e entre as lembranças contadas, inicia-se uma longa conversa. Zélia diz que não saberá conviver com a falta do marido e que com ele também foi embora sua razão de viver.

— O que é saudade? — pergunta Laurice.

— É a vontade de ter por perto quem você não tem mais — responde dona Zélia.

— Senti isso do pé de caju — retrucou Laurice. — Saudade da sua sombra, dos cajus docinhos que me dava e até do trabalho de limpar as folhas caídas no quintal. Se saudade for isso, não é coisa ruim. Olhando para as velas na cabeceira do caixão, Laurice acrescenta: — Mas eu sei que essa saudade às vezes dói. Porque saudade de gente é diferente. Mas deve ser como a cera da vela, vai derretendo para manter o fogo aceso. Quando a gente pensa que acabou, a gente junta tudo e recomeça. O importante é não deixar a chama morrer.

Parada, perdida entre a imagem do marido morto e a conversa de Laurice, pergunta dona Zélia:

— Do seu cajueiro, passou a saudade?

— Não passou. Mas eu plantei outro, e já tem flores nascendo. Talvez até dezembro já dê algum caju. Não passou a falta que sinto do outro. Ele era especial, foi lá embaixo dele, numa noite de lua, o meu primeiro encontro com meu marido, que Deus levou há 20 anos.

— Ah! Agora entendi tanto amor pelo cajueiro — responde Zélia, com um leve sorriso.

— Não era da árvore do cajueiro, era da lembrança que ele traz — confirma Laurice e continua: — Comadre, ninguém dura pra sempre, nem árvore, nem gente. Tudo passa. O que fica e marca não é a sombra do cajueiro, nem o cheiro do perfume do seu marido, é o tanto que ele significou para nós. É a lembrança da companhia, da presença. Essa que a senhora chama de saudade.

A estrela da manhã anuncia que o dia já desponta, e no fogão da varanda uma chaleira exala o café fresco. Enquanto Zélia, com a ajuda de Laurice, arruma as cadeiras para receber os vizinhos que chegarão para a cerimônia de despedida, o sol se levanta vibrante.

É hora de dizer adeus e deixar a saudade morar no lugar da tristeza. Dona Zélia, sentada à beira do caixão, diz as últimas palavras de despedida: “Não sei o que é a morte, mas sei que é feia e sem cor a sua cara. Ela chega sem avisar, mesmo quando o corpo alerta sua presença. Ela arranca de nós um pedaço da vida e com ela leva para sempre o que de melhor resolvemos entregar para quem se foi. Mas, desde que o mundo é mundo, é assim. Já vi gente nova morrer e sei que é pra lá que rumamos. O que fica aqui? Fica o cheiro do bem que deixou.”

O silêncio domina a cena. Respira dona Zélia e continua: “A saudade a morte não leva, não traz. Saudade só sente quem descobriu o amor. Mas, se é preciso se despedir, vá em paz. Aqui fico bem, na presença de sua ausência, na companhia do pé de ipê amarelo, onde, nos dias de sol, te sinto chegar.”

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