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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Despertar o encontro

Há alguns anos ganhei de presente um livro pequeno chamado Despertar o Encontro, do monge beneditino alemão Anselm Grün.

Kécio Rabelo

Há alguns anos ganhei de presente um livro pequeno chamado Despertar o Encontro, do monge beneditino alemão Anselm Grün. A partir daquele livrinho, cuja profundidade me surpreendera, tornei-me leitor assíduo de suas obras. Ele colocava luz sobre a beleza do encontro, dos encontros que a vida nos proporciona. A partir de “encontros” narrados nos Evangelhos, uma reflexão, uma indicação ou inquietação para outros encontros ou reencontros.

Esses dias, na ida para o trabalho, deparei-me com uma cena dessas que o cotidiano dos centros urbanos se acostumou a exibir. Nesse caso, com algumas peculiaridades. O acordar de dois moradores de rua, para receberem das mãos de um jovem que saía de seu carro, um saco de pão e duas caixas de leite líquido. Um deles, de mais idade, barbado e com pouco humor, devolveu o leite dizendo que não tomava leite frio, enquanto o outro, estendia a mão pedindo para garantir o dia seguinte. O rapaz deixou o local e os alimentos, entrou no carro e seguiu caminho, os dois sentaram-se para o café da manhã. O engarrafamento me permitiu alguns minutos parado naquele lugar e naquela cena. Aquele encontro rápido e sem muitas palavras, não fez ruir o sistema que exclui e segrega pessoas, nem resolveu o problema da fome no mundo, mas foi essencialmente revolucionário. Não sei por qual sentimento aquele rapaz estava movido, como tantos que assim agem todos os dias, tentando amenizar as dores dos excluídos, mas sei que aquele encontro transbordou para além dos três e como a mim, deve ter chamado a atenção de outros que por ali passavam. São as curvas do caminho a nos surpreender e questionar. São os encontros com o nosso “eu”, faminto de pão e de luzes a nos forçar mudanças de rotas e a fugir das fugas.

Existem encontros que reacendem luzes, despertam vigor, restabelecem a beleza da estrada, o fascínio da paisagem e desaceleram a alma. Esses deviam ser eternos, durar o que dura a vida, mas não são. São como paradas para um respiro, um socorro do corpo, às vezes da alma. Pulsam como a coragem do alpinista e permanecem mesmo sendo transitórios e raros. Curtos ou longos, à vista ou ocultos, se eternizam nas lembranças e voltas que no silêncio de qualquer dia, atravessam a memória.

Existem aqueles encontros intransponíveis, cuja realização estão para além da nossa vontade, agradáveis ou não, eles acontecem. E ainda, aqueles evitados, calculadamente pensados para não acontecerem. São parte de nós, das escolhas que a liberdade nos permite fazer. Ainda esses, em sua natureza, não deixam de ser encontros: são encontros com nossas misérias, com a vulnerabilidade dos nossos sentimentos. Há encontros que ferem e da dor ninguém gosta.

Do Auto da Compadecida, do grande Ariano Suassuna, lembrei-me do encontro de João Grilo no juízo final e a “liminar” dada por Jesus a ele antes da intervenção da Compadecida: “João, aqui é a hora da verdade”. No desespero dispara João: “- me ferrei, comigo era só na mentira”. O final todos conhecem.

Aquele encontro ilustra a brevidade da vida humana e a condição de encontro com as circunstâncias, decisivas para definirem o enredo da vida. Ao se defender e apelar, João se encontra com a sua história, e com ela, a realidade de tantos outros, conhecidos ou não, que encontrou pelo caminho. Há beleza e completude também no encontro final e todos os dias é tempo de realizá-lo.

Aquele rapaz, após servido o “café” aos dois, seguiu viagem, foi em casa ou ao trabalho retomar a rotina do seu dia. Deixou mais que pão e leite, deixou de si para aquele dia, para a vida dos dois e despretensiosamente para inspirar esse relato.

Do outro lado da rua, da mesa ou do sofá, pulsa o despertar de novos encontros. Do óbvio ou do banal, a partir de um bom encontro, surgem surpreendentes conexões, nominadas ou não. E assim, como talvez não tenhamos a ‘dupla sorte” de João de voltar e refazer o caminho, sigamos inspirados no samba da bênção de Moraes; “a vida é arte do encontro. Embora haja na vida, tantos desencontros”.

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