(Divulgação)
COLUNA
Isaac Viana
Isaac Viana é psicólogo, mestre em Cultura e Sociedade, professor universitário e escritor.
Isaac Viana

O caldeirão cultural de Jhumpa Lahiri

Apresento ao leitor três contos presentes em Intérprete de Males, coletânea publicada em 1999 e vencedora do Prêmio Pulitzer de Ficção no ano 2000.

Isaac Viana

Uma das coisas pelas quais nutro enorme prazer é descobrir novos escritores. Mesmo quando os nomes não são novos na arte da escrita, basta que eu nunca os tenha lido para que o queira fazer. Nesse afã, recentemente descobri a escritora inglesa Jhumpa Lahiri, de quem irei apresentar três contos presentes em Intérprete de Males, coletânea publicada em 1999 e vencedora do Prêmio Pulitzer de Ficção no ano 2000.

No conto Uma Questão Temporária, a partir de uma narrativa descritiva e intimista, a autora apresenta ao leitor um jovem casal, ambos de origem indiana, mas residentes nos Estados Unidos, que está passando por uma crise na relação. Crise essa aparentemente iniciada quando a esposa perdeu o bebê no momento do parto. Desde esse dia, após a esposa se recuperar e voltar para casa, o casal nunca mais foi o mesmo.

Agora, o que reina em casa é o silêncio. O casal, consciente ou inconscientemente, a autora, propositalmente, não deixa claro, passa a se evitar. O marido parece estar mais incomodado com a situação do que a esposa, embora não saiba bem o que fazer para resolvê-la.

Até que, certa manhã, chega um anúncio da companhia elétrica da região avisando que, naquele mesmo dia, das 20h00 às 21h00, o fornecimento de energia será suspenso para reparo da rede elétrica. O reparo durará cinco noites, sempre no mesmo horário.

Curiosamente, essa situação da falta de energia serve para, aos poucos, reaproximar o casal. Nessa reaproximação, a esposa sugere um jogo ao marido: contar um ao outro segredos nunca antes revelados. Ele aceita. O final da história é surpreendente.

Algo comum nas artes, de modo geral, é a presença de crianças contrastando com cenários de guerra e coisas semelhantes. Esse é um recurso bastante utilizado quando se quer elucidar os níveis de brutalidade aos quais os homens, adultos, podem chegar. Quando se expõe algo sujo juntamente a algo limpo, é mais fácil de se distinguir ambas as categorias: uma serve de parâmetro para a outra.

Em Quando o Senhor Pirzada Vinha Jantar, segundo conto da coletânea, a autora explora muito bem esse recurso para narrar a história do Sr. Pirzada, que, após deixar a cidade de Daca (capital do, até então, Paquistão Oriental), chega aos Estados Unidos para fazer uma pesquisa acadêmica e escrever um livro. Como o valor da bolsa que recebe é pouco, é convidado por um casal de indianos residente nos EUA para jantar e assistir aos noticiários todas as noites em sua casa – Pirzada não tem televisão no local onde está hospedado.

Assistir aos noticiários todas as noites é de fundamental importância ao Sr. Pirzada porque ele deixou a esposa e sete filhas no Paquistão Oriental, das quais não tem qualquer notícia há meses. Ele está preocupado com a família, visto que o Paquistão Oriental (atual Bangladesh) e o Paquistão Ocidental (atual Paquistão) estão em guerra e, devido a isso, muitas famílias estão perdendo suas casas e a própria vida.

Quem narra toda essa história é Lilia, a filha do casal que recebe o Sr. Pirzada. Na época em que os eventos narrados aconteceram, ela era apenas uma criança. Como gostava bastante do senhorzinho que quase todas as noites levava doces para ela, e como seu pai queria que ela entendesse a realidade das pessoas que não tinham uma vida confortável como a dela, precisou aprender, por meio dos noticiários e das conversas da família com o novo amigo, o que era a guerra e o sofrimento das pessoas, coisas às quais nunca fora antes exposta.

É muito interessante acompanhar o amadurecimento da menina quanto a esses assuntos; ver, a partir dos olhos dela, a ganância dos adultos. Se a guerra, por si só, se mostra brutal, a partir da perspectiva de uma criança, então, se revela também abjeta e injustificável.

Segue uma citação que demonstra a força e a beleza do texto: "Eu nunca havia rezado por nada antes, nunca tinha aprendido nem sido orientada a rezar, mas resolvi, diante das circunstâncias, que era o que devia fazer. Essa noite, quando fui ao banheiro, só fingi escovar os dentes, por medo de remover a oração também".

O terceiro conto da obra de Jhumpa Lahiri é o que dá nome ao livro, Intérprete de Males. Dessa vez, a autora nos leva à Índia para narrar a história de um guia turístico que está acompanhando um casal dos Estados Unidos e seus três filhos.

Em algum momento da narrativa, quando a família está dentro do carro com o guia, se dirigindo ao Templo do Sol, importante ponto turístico da região, ele começa a falar de sua vida pessoal, inclusive da profissão peculiar que exerce quando não está atuando como guia turístico. Ele auxilia um médico interpretando as queixas dos pacientes que falam um dialeto que o médico não entende. Ou seja, ele é um intérprete de males.

A sra. Das, esposa do sr. Das, acha interessante a outra profissão do guia, tecendo alguns comentários nesse sentido, o que faz o guia, pela primeira vez na vida, se sentir importante enquanto intérprete de males.

A partir desse episódio, mesmo nesse curto espaço de tempo do passeio, uma espécie de vínculo começa a surgir entre a Sr. Das e o guia turístico. Vínculo esse baseado em algumas expectativas que um passa a nutrir em relação ao outro. No entanto, essas expectativas logo são frustradas por ambas as partes.

Filha de pais indianos, Jhumpa Lahiri nasceu na Inglaterra, foi criada nos Estados Unidos e atualmente vive na Itália – tendo, inclusive, adotado a língua italiana em sua escrita. Fruto desse caldeirão cultural, a autora explora em seus contos, dentre outros aspectos, as dificuldades nas relações interpessoais e sociais proporcionadas, sobretudo, pelo choque de diferentes culturas quando em algum nível de convivência.

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