(Divulgação)

COLUNA

Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Água Viva

Dentre os principais livros de Clarice Lispector, destaca-se o romance Água Viva (1973), uma história sem história, que aborda temas filosóficos que perfazem as nossas identidades.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

Em Dezembro de 2020 foi comemorado o centenário de uma das maiores escritoras de todos os tempos, Clarice Lispector. Ler a obra clariceana é mergulhar nas profundezas de si mesmo e emergir com dezenas de questionamentos, que matizam nossas vidas com novas cores, ao passo que ressignificam fatos cotidianos, até então negligenciados. Essas narrativas são construídas de modo que o leitor é inserido em um contexto muito próximo ao seu – como, por exemplo, o de andar pelas ruas, observar uma rosa ou, simplesmente, ficar em casa –, no qual pequenas atitudes, ou mudanças de perspectiva, levam-no a um insight, um despertamento para o mundo que o cerca. 

Assim, para uma compreensão mais profunda da vida e do outro, sobretudo em tempos de crise, como esse no qual estamos inseridos, a obra de Clarice Lispector se impõe como leitura fundamental. Dentre os principais livros dessa intrigante autora, destaca-se o romance Água Viva (1973), uma história sem história, que aborda temas como tempo, vida, morte, entre outras questões filosóficas que perfazem as nossas subjetividades e identidades. Essa, como outras leituras de Clarice, quebra as barreiras do espaço-tempo e inicia um encontro com o nosso próprio eu, porque “se encontra atrás do pensamento”. 

Água Viva foi publicado em 1973, pouco antes da morte da autora, e trata-se de um longo texto ficcional, em forma de monólogo, que apresenta uma linguagem lírica única, chegando a ser considerado um poema em prosa. Ao longo da obra, nota-se que há uma desconstrução da tradicional estrutura romanesca, uma vez que, a partir da liberdade, própria da escrita clariceana, é criado um gênero híbrido, dotado de fluidez, repetição e uma suposta inconclusão. 

Narrado em 1ª em pessoa por um(a) protagonista que encontra-se na solidão de sua morada física e psicológica, esse texto traz divagações de um narrador-personagem que é um(a) pintor(a), mas está arriscando-se no mundo da escrita e notando a similitude entre a assimilação/captura do presente através das palavras e das cores. Entre os diversos temas discutidos, com sutileza no decorrer do romance, vale ressaltar um termo que carrega uma enorme carga semântica: o “instante-já” (a urgência de viver o agora). 

De acordo com Paul Ricoeur, no primeiro tomo de Tempo e Narrativa (1994), “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo [e] a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (p. 15). Vale ressaltar que, na referida obra, o filósofo tomou de empréstimo a tese do “tríplice presente” contida nas Confissões (397 - 400), de Agostinho de Hipona, que consiste em: “presente do passado”, “presente do presente” e “presente do futuro”. Desse modo, o presente do passado corresponderia à memória, o presente do presente à visão/atenção e o presente do futuro à espera. Nesse sentido, Correia (2006) afirma que

Agostinho chega até admitir três modalidades de tempo — passado, presente e futuro —, mas impõe uma condição: para se falar no tempo de forma tríplice, necessário se faz eleger o presente como uma espécie de âncora, de centro gravitacional, onde girarão, em torno de sua órbita, as outras duas modalidades de tempo — passado e futuro —, sob pena de organizar a existência apenas do presente (p. 55).

 

Diante disso, passado e futuro passam a ser vistos como convergências e extensões do tempo presente. Após interpretar a tese do tríplice presente, Ricoeur (1994) chegou à conclusão de que o presente é o “instante indivisível”. Outro aspecto importante da teoria agostiniana, apontado por Ricoeur, trata-se da ideia de que o tempo é apreendido pela alma humana, que seria o lugar onde emerge a teoria do tríplice presente. Mas por que a alma? Pois ela pode ser entendida como o “centro das capacidades intelectuais e sensíveis do homem, é o lugar em que podemos situar o tempo” (Antonio, 2022, p. 132). Dessa forma, segundo Guimarães (2014):

Agostinho toma uma via acessória e desloca o centro de investigação para a realidade interior do homem, a alma (anima). É na alma que o bispo de Hipona pretende encontrar respostas para essa realidade temporal. Os elementos que captam a realidade temporal são a memória, a atenção e a espera (p. 75).

À vista disso, o tempo passado tornou-se “presente do passado”, que corresponde às nossas memórias. Por sua vez, o tempo presente passou a ser compreendido como o único tempo existente, bem como passou a ser nomeado como “presente do presente”, um instante fugaz, que desaparece à medida que pensamos sobre ele, e, por isso, equivale à atenção ao mundo ao nosso redor. Por fim, o tempo futuro transformou-se em “presente do futuro”, que equipara-se com a espera, o anseio pelo que está por vir, nossas esperanças e expectativas. Nesse contexto levanta-se outra questão: “O tempo deve ser pensado como transitório para ser plenamente vivido como transição” (Ricoeur, 1994, p. 47). Isto é, para viver o tempo em sua plenitude, é preciso entendê-lo em toda a sua fugacidade e rapidez. 

A física, inicialmente, compreendia que o universo possuía três dimensões, seriam elas: comprimento, largura e profundidade – que representam o espaço. Após as Teorias da Relatividade, de Albert Einstein (1905-1915) foi definido que existiria, ainda, uma quarta dimensão, que seria justamente o tempo. Nesse contexto, de acordo com Brandão (2003, p. 132), em Água Viva (1973), “Clarice quis responder a uma das questões mais polêmicas da Ciência, especialmente da Física, que é o problema do tempo”. Diante disso,

A compreensão e domínio do tempo é algo que ultrapassa o racional. Em todas as esferas da vida humana buscamos maneiras de controle do tempo para os mais diversos fins. Seja a Medicina estética que procura “congelar” os efeitos da passagem do tempo nas pessoas, seja a Física que estuda as dimensões temporais do universo para tornar possível as explicações sobre os fenômenos da terra; seja a Arte que, antecipando muitas vezes a ciência, ousa criar respostas para problemas irresolvidos por esta mesma ciência. [...] A literatura não foge à regra nessa busca incessante de domínio do tempo (Brandão, 2003, p. 133).

Dessa forma, no romance Água Viva (1973), o(a) narrador(a)-personagem de Lispector admite que “cortar o tempo é apenas hipótese de trabalho. Mas o que existe é perecível e isto obriga a contar o tempo imutável e permanente. Nunca começou e nunca vai acabar. Nunca” (p. 43). Ou seja,  o tempo não tem fim, mas como somos seres finitos, precisamos contá-lo à conta gotas. E mais, o(a) protagonista tem plena consciência de que o simples fato de pensar sobre o tempo não é confortável, e, consequentemente, aquilo que escreve também não é, pois, por “enquanto o tempo é quanto dura um pensamento” (p. 18). Nesse sentido, ainda conforme Brandão (2003),

Água Viva, de Clarice Lispector, é, antes de tudo, uma dessas narrativas com semblante de esfinge que propõe pausadamente um enigma: decifra-me ou devoro-te. A reação inicial de qualquer leitor/a acompanha espanto e perplexidade. [...] retomamos a narrativa para ver no fundo das águas densas clariceanas se conseguimos mergulhar na essência de sua busca de sentido, numa narrativa que escapa, escorrega dos nossos dedos, assim que tentamos forçar-lhe um modelo de leitura. [...] A liberdade de Água Viva é como a própria água corrente que nos escapa dos dedos e que flui apesar das barreiras que existam no tempo e no espaço (p. 129-130).

Como vimos, Ricoeur (1984) interpretou a tese do “tríplice presente”, de Agostinho de Hipona, que considerava que o único tempo existente seria o presente. Essa teoria filosófica, encontra-se latente em Água Viva (1973), uma vez que o(a) narrador(a) afirma: “mesmo que eu diga ‘vivi’ ou ‘viverei’ é presente porque eu os digo já” (Lispector, 1973, p. 15). À vista disso, somente o tempo presente existe, e na obra ele é conhecido como o “instante-já”, que em Ricoeur e Agostinho, seria o “presente do presente”. O passado, por sua vez, está intimamente ligado à memória, e corresponde ao “presente do passado”, como é possível perceber no trecho a seguir:

Oh vento siroco, eu não te perdôo a morte, tu que me trazes uma lembrança machucada de coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob formas outras e diferentes. A coisa vivida me espanta assim como me espanta o futuro. Este, como o já passado, é intangível, mera suposição (Lispector, 1973, p. 43).

Dessa maneira, o passado pode ser compreendido sob outro prisma, uma vez que é tido como “intangível”, “mera suposição”, bem como algo cíclico, que sempre se repete, mesmo que de formas diferentes. O presente do passado é tudo aquilo que ficou para trás dos instantes-já, e se tornou memória. Como foi mencionado anteriormente, o tempo presente, também conhecido como “presente do presente”, é nomeado de “instante-já”, na referida narrativa clariceana. Segundo Machado (2018),

No texto flui o sentimento de agora e, paradoxalmente, interliga a petrificação e a mudança. A partir de uma leitura pautada na busca do significado e na vivência do instante, possibilita-se tecer algumas reflexões a respeito do presente e da vida. Adentrar no mistério da existência causa em alguns, indagações nem sempre respondidas. Clarice (1973) convida a essa jornada, na qual será possível destacar alguns pontos relevantes. [...] Presenciar de maneira verdadeira o hoje possibilita a instauração do futuro. A vida vista pela vida não precisa ter sentido, pois é essa falta de sentido que faz pulsar a vida. Viver somente o que é passível de sentido é limitar-se (p. 84).

Nesse sentido, o presente pode ser entendido como algo fugidio, passageiro, e que é sempre atual. Assim, o instante-já seria a busca incessante pelo tempo presente, que passa e escapa quando simplesmente pensamos sobre ele, tornando-se passado e prosseguindo para o futuro. Desse modo, “a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si” (Lispector, 1973, p. 08). Nessa perspectiva, a vida é formada por um conjunto de instantes, que juntos atribuem valor à existência, não por sua duração, visto que são finitos, mas por seu significado.

O(a) protagonista prossegue afirmando que “só no tempo há espaço” (Lispector, 1973, p. 08) para ele(a). Mas, como vimos, esse tempo trata-se apenas do presente, este “próprio instante perecível” (p. 21). Então, o instante-já é comparado a um pirilampo (vaga-lume), “que acende e apaga”, e ainda, ao instante em que uma roda de automóvel “em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado” (p. 13).

Além disso, o(a) narrador(a) acredita que existe uma certa “harmonia secreta” na desarmonia, por isso, o que ele(a) almeja não é o que “está feito mas o que tortuosamente ainda se faz” (Lispector, 1973, p. 10). Diante disso, admite que não sabe captar “o que acontece já senão vivendo cada coisa que agora e já [...] ocorra e não importa o quê” (p. 58). Ou seja, a vida, após ser compreendida como a soma de instantes passageiros, consiste, ainda, no improviso e no incerto:

É interessante quando se toma consciência de que o improviso também faz parte da arte de existir. Nada é estático. Assim, necessita-se de flexibilidade para poder viver de acordo com a ocorrência dos fatos e não com um roteiro predeterminado, que impinge uma atuação mecanizada exigida por certos padrões concretizados (próprios ou do mundo). A significação de cada existência ultrapassa significados. Tem-se um processo que em algumas situações carece de sentido. A renúncia do significado traz liberdade e, com isso, pode-se encontrar a beleza no sentido oculto. O mistério permeia o cotidiano e eventualmente a única ordem visível do mundo consiste na respiração (Machado, 2018, p. 85).

“Quero possuir os átomos do tempo” (Lispector, 1973, p. 07), com essa afirmação o(a) protagonista de Clarice apresenta o objeto de sua busca. Mas, para isso, utiliza um certo método científico, um tipo de metodologia. O que ele(a) quer entender? O tempo. Após compreender, o que deve fazer? Capturar o instante-já. Mas como? Através da escrita, sobretudo, mas também da pintura. Ou melhor, através da atemporalidade que é própria da arte. De acordo com Brandão (2003),

Água Viva de Clarice Lispector é uma espécie de caldeirão cósmico onde o tempo só existe no presente, porque a autora-narradora decidiu que quer "possuir os átomos do tempo" (p.14). Com que finalidade? É a pergunta que fazemos enquanto leitores de um enigma em princípio insolúvel. O livro inteiro é feito de respostas para essa aparente insanidade. Clarice busca a dimensão do instante-já, uma busca de controle do tempo, pois "a invenção do hoje é meu único meio de instaurar o futuro" (p.16). Essa aparente sandice é perfeitamente plausível se percebemos a narrativa clariceana num espaço de interatividade entre autora/leitor/a. A autora escreve, está escrevendo (o uso do gerúndio é patente em quase todo o livro) e permanece escrevendo até que a leiamos (p. 134).

Assim, o(a) narrador(a) afirma: “A palavra é a minha quarta dimensão” (Lispector, 1973, p. 08), para evidenciar que a palavra escrita é a sua forma de expressar/capturar o tempo (quarta dimensão). Isso porque está “lidando com a matéria-prima”, e está “atrás do que fica atrás do pensamento” (p. 10). Será a palavra matéria-prima e o seu significado estará atrás do pensamento? Essas são as nossas hipóteses. E os questionamentos, mais do que as respostas, continuam a surgir: “A palavra é objeto?” (p. 10). Dessa maneira, o(a) protagonista de Lispector (1973) afirma:

na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo - e não ver através da memória de ter visto em um instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante (p. 62).

Outro ponto que merece destaque trata-se da entrelinha, o significado (oculto) das palavras. “Ouve-me, ouve o silêncio. O que eu te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa” (Lispector, 1973, p. 12), pois o “melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas” (p. 78). As palavras, assim, capturam o instante-já, único tempo existente na narrativa clariceana, pois elas têm uma pluralidade de significados possíveis, que ficam implícitos até o instante em que surge o(a) leitor(a), e atualiza, constantemente, o texto.

E quanto ao futuro? Normalmente, pensamos o futuro como algo distante, remoto, inalcançável. Na tese do tríplice presente, ele é conhecido como presente do futuro. “Há o futuro. Que é hoje mesmo” (Lispector, 1973, p. 31). No romance Água Viva (1973), o futuro, assim como em Ricoeur (1984), é apenas uma pequena espera. “Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro” (p. 55). Após o presente do presente, o presente do futuro instaura-se e logo torna-se uma memória (presente do passado).

“Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena” (Lispector, 1973, p. 07). Nesse contexto, o futuro acontece imediatamente após o instante-já, o futuro não é amanhã, é “hoje mesmo”. E é criado com a mesma habilidade de um “toureiro na arena”, isto é, com o mesmo improviso, espontaneidade e agilidade.

“Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca” (Lispector, 1973, p. 15), essa é a constatação a que chega o(a) protagonista de Clarice. Diante disso, somos a soma do passado (antes, memória), com o presente (quase, atenção) e o futuro (nunca, espera). Portanto, cada indivíduo é “um ser concomitante”, que reúne em si “o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios” (p. 18). Cada um de nós, de acordo com a duração de nossa existência, cria uma “significação oculta” que nos ultrapassa.

 

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões [397 - 400]. Tradução de Lorenzo Mammì. 2ª ed. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2017.

ANTONIO, Itasuan. Santo Agostinho e Paul Ricoeur: um diálogo sobre o conceito de tempo. In: Logos & Culturas: Revista Acadêmica Interdisciplinar de Iniciação Científica. Fortaleza, v. 18, n. 1, 2022.

BRANDÃO, Izabel. Água Viva: a busca libertária do tempo presente. In: Leitura - Linguística e Literatura, n. 31, jan. 2003-jun. 2003.

CORREIA, Fábio José Barbosa. O problema do tempo no pensamento de Agostinho de Hipona e Henri Bergson. 118f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.

EINSTEIN, Albert. A Teoria da Relatividade Especial e Geral [1905-1915]. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007.

GUIMARÃES, Pedro Henrique Corrêa. O tempo da palavra: um estudo sobre as Confissões de Santo Agostinho (séc. IV d.C.). 105 f. Dissertação (Programa de Pós-graduação em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.

MACHADO, Andrezza Souza Martinez. O agora é um instante. In: Reverso. Belo Horizonte, ano 40, n. 76, dez., 2018. 

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: Tomo I [1984]. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

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