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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Geografia da dor

Guerras são feridas abertas na história humana. Tão presentes no decurso dos séculos que a Bíblia, - hebraica e cristã, está cheia de relatos de guerra, muitas delas, com pretensa participação divina.

Kécio Rabelo

Guerras são feridas abertas na história humana. Tão presentes no decurso dos séculos que a Bíblia, - hebraica e cristã, está cheia de relatos de guerra, muitas delas, com pretensa participação divina. A história do ocidente foi marcada profundamente por esses acontecimentos, uns mais velados, outros, nem tanto.

A expansão territorial, a corrida pelo ouro, pelo petróleo e a sórdida concorrência de mercado, sob a poeira fina de ideologias e crenças são motivos sempre presentes em todo e qualquer estilhaço de guerra. No oriente, os conflitos se dão, por esses e outros motivos, mas sempre embalados pelos mesmos princípios.

Na fila do supermercado, onde acontecem as maiores discussões sociais e políticas, ouvi uma opinião que me chamou bastante atenção: aquela senhora de cabeça branca e traços orientais, a partir do que passava na TV sobre as declarações acerca da guerra em Gaza, sentenciou: “ guerra não se compara uma com a outra, cada uma tem seu motivo, o que se pode comparar, são as feridas que elas deixam, essas não saram jamais” - e correu para o caixa. Não sei qual experiência aquela senhora teve com a guerra, mas vi verdade e uma carga grande de emoção. - e notável revolta naquela fala.

Ela resumiu um pouco do que tenho pensando vendo as notícias e lendo algumas análises sobre os desfechos dessa guerra, uma entre tantas que acontecem no mundo simultaneamente, das quais pouco ou nunca se fala. 

A morte de mulheres e crianças deve causar em todos nós algum tipo de constrangimento, ainda que, em parte, não tenhamos nenhuma ligação direta com o acontecimento. O fato é que a solidariedade universal, essa invocada por todos, nos obriga a algum tipo de reparação, seja de posicionamento, seja de manifestação, mas nunca de silêncio e cumplicidade.

A história de todos os povos está manchada de sangue. A nossa também está. Durante o processo de invasão e colonização das Américas, houve um verdadeiro genocídio, a dizimação quase absoluta dos povos originários que aqui habitavam antes da invasão europeia. Estima-se que 56 milhões de indígenas foram assassinados. No Brasil, além do extermínio dos indígenas, vivemos nada menos que trezentos anos de escravidão dos povos africanos, cujos registros desafiam o conceito de uma nação civilizada. As guerras das milícias, das facções e de outros tentáculos do crime organizado, inundam de sangue o país, no anonimato das notícias e das cidades, deixando à margem, a informação e a realidade que circunda nossas metrópoles. São sempre elas, mulheres e crianças as primeiras vítimas de toda bala do ódio. No caso do Brasil, mulheres, crianças e jovens pretos estão no ápice do gráfico sangrento. Voltemos ao mundo.

Penso na Síria em guerra desde 2011, onde mais de 450 mil pessoas já morreram. No Iêmen, onde 10 mil crianças já foram assassinadas ou mutiladas. Na Ucrânia, no coração da Europa, mais recentemente. Há ainda a guerra da fome, que perpasse os traços do mapa mundi: são 800 milhões de pessoas que passam fome, segundo as Nações Unidas.

São ebulições do ódio, do domínio, da indiferença, da desenfreada busca pelo poder, do império do capital que deixa rastros de morte por onde passa, exclui e mata. Não é, nem deve ser sobre territórios, sejam eles geográficos, religiosos ou afetivos que deve recair a nossa solidariedade, mas sobre as pessoas, os semelhantes nossos, independente da língua, da religião, do sexo ou da cor. Sobre eles e suas dores, suas perdas e seu fim que deve convergir nossa reflexão e quem sabe; nossa ação.

Se não somos capazes de gastar uns minutos ao menos lembrando daquelas mães, cujos filhos são arrancados e mortos em Gaza, e outras partes do mundo. Se não somos capazes de trazer ao coração aquelas crianças cujos pais nunca mais verão, sem direito a pertencer a uma família e quiçá a viver. Se não somos capazes de em casa, com as nossas crianças ensinar lições de fraternidade e de comunhão com quem sofre e nada tem. Se não tiramos das mãos dos nossos filhos, as armas, ainda que de brinquedos, perversa educação para a guerra. Se não tiramos das telas as batalhas sangrentas que enfatizam a morte e a violência, banalizam a vida e arremessam para a ruína humana. Por que nos julgamos capazes de analisar o grau, a intensidade ou a razão das guerras de ontem e de hoje e de seus agentes? Por que a indignação é sobre a fala e não sobre os fatos? - nem tudo é mercado e acordo, ainda tem gente sobre a face da terra. Enquanto houver crianças, haverá sinais de esperança e de paz, haverá crença num mundo melhor.

Aquela senhora tinha razão e suas palavras devem nos interpelar: o que de igual, - e de mais perverso tem na guerra são suas feridas. Elas não saram. De diferente? Talvez o ponto de onde vemos. Seja no oriente ou no ocidente, há sangue de inocentes fecundando o chão, há choro e gritos ouvidos de mães e filhos desesperados. Há silêncio de quem devia gritar, hipocrisia de quem devia calar. Mas sim, não percamos e esperança, nem vacilemos na reconstrução, ainda é possível sonhar e plantar a cultura da paz.

Sempre invoco Dom Helder, profeta da esperança, “ que se acabe, mas se acabe mesmo, a maldita fabricação de armas” e ainda: “ a única guerra legítima é aquela que se faz contra o subdesenvolvimento e a miséria “.

Sobre aquelas feridas que não parecem sarar, há o bálsamos da esperança, versejado na canção popular cantada pelas CEBs: “ há sobre a mesa umas flores, pra festa que vem depois”.

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