(Divulgação)

COLUNA

Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

O Enigma do Espelho

Dentre as principais obras de Guimarães Rosa, destaca-se o livro Primeiras estórias (1962), no qual encontra-se o conto O Espelho.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

A obra de Guimarães Rosa, segundo Antonio Candido (1989), é revolucionária, por isso o autor se encontra lado a lado com grandes nomes da Literatura Mundial, tais como Juan Rulfo, Vargas Llosa, Cortázar e Clarice Lispector. Isso porque Rosa escreve com requinte “superando o naturalismo acadêmico” e criando “no universo dos valores urbanos, uma espécie nova de literatura” (p. 162). Dentre as principais obras roseanas, destaca-se o livro Primeiras estórias (1962), no qual encontra-se o conto O Espelho. De acordo com Ramos (2009), a “composição desse objeto livro” é inovadora, uma vez que o referido conto está 

“em espelhamento, no meio do livro, que contém 21 estórias (dez antes e dez depois). Assim, as estórias se espelham; respeitadas suas posições, uma será o reflexo invertido da outra. Vejamos um exemplo: a primeira e a última estória possuem o mesmo protagonista (o Menino), em ambas ele parte em viagem, mas no primeiro caso ele está indo ao encontro do sonho desejado e na última ele está sendo arrancado, afastado daquilo que deseja. A relação entre as narrativas é explicitada pelo início dos textos” (p. 36). 

Desse modo, Primeiras estórias (1962) é um grande espelho, composto por imagens invertidas. Nesse contexto, o conto que está situado no meio do livro, intitulado O Espelho, tem um papel de destaque, uma vez que, diferente das demais estórias, assemelha-se à uma carta, com um estilo rebuscado. Essa similaridade com o gênero textual carta, pode ser observada, no conto, através da linguagem dialógica, que pressupõe um interlocutor/leitor, e que, por vezes, lhe solicita uma resposta: “Se me permite, espero, agora, sua opinião [...] Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência” (ROSA, 1962, p. 75). 

Devido às expressões “servo” e “senhor”, notamos que existe uma relação de respeito e hierarquia entre o remetente e o seu destinatário. Logo, chegamos à conclusão de que não se trata de um interlocutor qualquer, leigo no assunto, mas sim de alguém que possui o respaldo de ser “companheiro no amor da ciência”, isto é, trata-se de um estudioso, que também tem teses sobre os espelhos. Além disso, é possível identificar, no trecho supracitado, que o conto é narrado em primeira pessoa, por um narrador-personagem. 

Vale enfatizar que tanto o protagonista quanto o interlocutor não são nomeados, ao longo da estória, o que denota um sentido mais genérico à narrativa. Essa indeterminação pode ser observada ainda nos elementos espaço-temporais. O Espelho (1962) é um texto relativamente curto, que conta com 7 páginas, e é ambientado, predominantemente, em um espaço indefinido – pois, o único cenário citado, no decorrer do texto, trata-se de um banheiro público. O tempo, por sua vez, é psicológico, uma vez que não há menção de dias, meses ou anos; então, sobrelevam-se apenas as memórias e pensamentos do narrador-personagem. 

O enredo se inicia com uma explicação do protagonista: essa, certamente, não foi “uma aventura, mas experiência”, que lhe proporcionou uma série “de raciocínios e intuições”, que tomaram-lhe “tempo, desânimo, esforços”. Há também uma provocação ao destinatário do conto-carta: o “senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho, nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho?” (ROSA, 1962, p. 69). O narrador logo refuta a concepção da física, especificamente da óptica, e esclarece que está se referindo ao “transcendente”, pois tudo “aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles” (ROSA, 1962, p. 69). 

Assim, o protagonista evoca o mistério do espelho, demonstrando que esse enigma persiste desde os mitos, tais como o de Narciso. Então, ele afirma que “são para se ter medo, os espelhos” (ROSA, 1962, p. 70). Esse medo, porém, não é infundado. O narrador-personagem, enfim, conta o motivo de sua inquietude: estando em um banheiro público, sob o ângulo de dois espelhos (um fixado na porta, e o outro, acima da pia), se depara com um monstro, “desagradável”, “repulsivo senão hediondo”. O monstro, na verdade, era ele mesmo, pois “é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo” (SCHOPENHAUER, 2002, p.26). Nesse sentido, o filósofo Schopenhauer afirma ainda que: 

“O egoísmo é colossal, o universo não pode contê-lo. Porque se dessem a cada um a escolha entre o aniquilamento do universo e a sua própria perda, é ocioso dizer qual seria a resposta. Cada um considera-se o centro do mundo [...] Chega a ser uma coisa cômica, essa convicção de tanta gente procedendo como se só eles tivessem uma existência real, e os seus semelhantes fossem meras sombras, puros fantasmas. [...] então, recuamos, gritamos, como se esbarrássemos com um monstro ainda desconhecido” (2014, p. 42). 

Dessa forma, tanto em Rosa, quanto em Schopenhauer, o monstro, a que tanto temem, é ninguém menos do que o próprio ser humano; tal como a máxima de Thomas Hobbes, “O homem é o lobo do homem”. Após esse primeiro insight, o protagonista começa sua jornada em busca de si mesmo, pois, assim como no poema Retrato, de Cecília Meireles, sua face, em algum momento, se perdeu. Por isso, ele tenta “retirar” do espelho, isto é, de sua visão/percepção, todas as características que aprendeu/herdou dos Outros: traços animais, “elementos hereditários”, “o contágio das paixões”, mas também os padrões sociais, materializados nas “ideias e sugestões de outrem”; pois, o “outro”, conforme Merleau-Ponty (2002), é “o espelho de mim mesmo, como eu sou dele”, e isso permite que

“nós mesmos não tenhamos, de alguém ou de nós, duas imagens lado a lado, mas uma única imagem, onde ambos estamos implicados, que minha consciência de mim mesmo e o meu mito do outro sejam não duas contraditórias, mas o avesso um da outra. Talvez seja tudo isso que se quer dizer quando se diz que o outro é o responsável X de meu ser-visto. Mas então seria preciso acrescentar que ele o pode ser somente porque vejo que me olha e que ele só pode olhar-me a mim, invisível, porque pertencemos ao mesmo sistema de ser para si e de ser para outrem, somos momentos da mesma sintaxe, contamos com o mesmo mundo, dependemos do mesmo Ser” (p. 86). 

O “eu” e o “outro” são, portanto, reflexos invertidos de uma única imagem, por isso, o protagonista precisou criar estratégias para “aprender a não ver” esses traços que compõem o “avesso” de sua face: “digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes” (ROSA, 1962, p. 73). Ver e não-ver são mecanismos que utilizamos corriqueiramente, visto que tratam-se de uma escolha de perspectiva, ao focarmos em um objeto, aquilo que está ao seu redor fica em segundo plano, às margens de nosso campo de visão. 

Diante disso, Merleau-Ponty (2002) constata que ao observar uma “mancha de luz que se marca em dois pontos diferentes sobre minhas duas retinas, vejo-a como uma única mancha à distância porque tenho um olhar e um corpo ativo, que tomam diante das mensagens exteriores a atitude conveniente para que o espetáculo se organize, se escalone e se equilibre” (p. 16). Logo, a perspectiva é um importante aspecto utilizado não somente para ver, mas também para não-ver. Assim, após longas horas de concentração para “excluir, abstrair e abstrar” os elementos alheios à sua efígie, o narrador-personagem começa a sofrer fortes dores de cabeça e passa meses sem se ver “em qualquer espelho”. 

De acordo com Schopenhauer (2005), os pensamentos são frutos da espera. Em razão disso, quando precisamos tomar uma decisão importante, por exemplo, “não podemos simplesmente sentar a qualquer momento, considerar as razões do caso e chegar a uma conclusão; pois, se tentamos fazê-lo, frequentemente nos vemos incapazes, naquele momento particular, de manter nossa mente focada naquele assunto” (p. 04). Nesse caso, é necessário “aguardar que o estado mental adequado manifeste-se por si só”, o que, na maioria das vezes, ocorre inesperadamente. Portanto, trata-se de um longo processo, “e a variedade de temperamentos nos quais o analisamos em diferentes momentos sempre coloca o assunto sob uma nova luz” (p. 04). 

E essa foi, justamente, a conclusão a que chegou o protagonista do conto roseano: “O tempo, em longo trecho, é sempre tranquilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse” (ROSA, 1962, p. 74). Muito tempo se passou, e, enfim ele, curiosamente, olhou um espelho, contudo, para o seu assombro, não viu absolutamente nada. Apalpou o seu corpo e percebeu que ainda existia no plano físico. Porém, seus exercícios obtiveram êxito, e, após subtrair os traços que havia tomado de empréstimo dos “outros”, nada lhe restou, somente “a face vazia do espelho”. O narrador-personagem ficou em completo desespero, e, mais uma vez, abandonou o hábito de encarar os espelhos. 

Dessa maneira, passaram-se anos de “sofrimentos grandes”. Por fim, o protagonista decidiu defrontar-se com o espelho, “não rosto a rosto”. Inicialmente, ele nada enxergou. “Só então, só depois”, para a sua surpresa, ele fitou sua imagem refletida no espelho, ou melhor, viu uma pequena “luzinha” brilhando: “Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto - quase delineado apenas” (ROSA, 1962, p. 75). Mirou um “rostinho de menino, de menos-que-menino, só”. Essa descoberta o encheu de alegria, deu-lhe esperança, mas, paralelamente, gerou uma série de indagações filosóficas: no que consiste a existência humana? Quem somos de fato? Chegamos a existir? 

Portanto, ao longo da narrativa, é possível notar uma considerável mudança no protagonista. Inicialmente, ele enxerga um monstro nos espelhos de um banheiro público, um lugar, no mínimo, curioso, por representar a coletividade; quantos, ali, também se defrontaram com seus reflexos mais obscuros? Por se tratar de um ambiente público, esse espaço denota, ainda, a ideia de ser acompanhado, e, consequentemente, ser visto pelo “outro”. Diante disso, a identidade do narrador-personagem, a princípio, não passava de uma colagem de traços e opiniões alheias. Somente após um longo tempo de autoanálise, ele observa o seu verdadeiro “eu”, simbolizado pela pequenina luz. Nesse sentido, segundo Schopenhauer (2002), 

“Por isso, uma apreciação correta do valor daquilo que se é em si e para si mesmo, comparado àquilo que se é apenas aos olhos de outrem, contribuirá em muito para a nossa felicidade. À primeira rubrica pertence tudo o que preenche o tempo de nossa própria existência, o conteúdo íntimo desta [...] Pois o lugar em que estas coisas têm a sua esfera de ação é a própria consciência” (p. 62). 

No desfecho do conto-carta, de Guimarães Rosa, o protagonista, afinal, se depara com o seu verdadeiro eu, sua identidade genuína, e, compreende que essa é a imagem invertida da sua vida pregressa, pois, antes de seu encontro com o espelho, ele era apenas uma mescla de características e expectativas alheias. Desse modo, finalmente, ele alcança a terceira margem e encontra o equilíbrio existente entre o “eu” e o “outro”.

 

REFERÊNCIAS:

CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

MEIRELES, Cecília. Retrato. In: Viagem. 2. ed. São Paulo: Global, 2012.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A Prosa do Mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

RAMOS, Jacqueline. A vereda especular de Rosa. In: A Palo Seco: Escritos de Filosofia e Literatura / Grupo de Estudos de Filosofia e Literatura, Universidade Federal de Sergipe. Vol.1, n.1 (2009) -. Aracaju: UFS, CECH, 2009.

ROSA, João Guimarães. O espelho. In: Primeiras estórias [1962]. São Paulo: Editora Global, 2019.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.

__________. Dores do mundo. Trad. José Souza de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2014.

__________. Pensar por si mesmo. In: A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005.

As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.