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COLUNA

Prof Michael Amorim
Michael Amorim é professor de filosofia, conferencista, podcaster pai e marido.
Prof Michael Amorim

Sobre o Terceiro Céu de Dante

Somente uma leitura atenciosa, onde se busca o significado dos termos utilizados pela mente medieval do grande discípulo de Virgílio, pode nos fazer chegar ao seu entendimento. Mas, com auxílio do próprio Dante Alighieri, adentremos um pouco na camada mai

Prof Michael Amorim

Por esses dias postei em meu perfil no facebook sobre a profundidade cultural, filosófica e simbólica da obra de Dante Alighieri e afirmei que é sempre um péssimo negócio ignorá-la ou tratá-la como já superada. Tsc, tsc. Para exemplificar a grandeza da cultura medieval e de seu representante máximo, resolvi analisar com vocês (sem grandes pretensões) esta pequena estrofe de um de seus poemas:

 

“Vós que com o intelecto o terceiro céu moveis

ouvi o raciocinar de meu coração,

que não sei dizê-lo a outrem, tão novo me parece.

O céu que segue vosso valor, gentis criaturas que sois,

me transporta na condição em que me encontro.

Por isso o falar da vida que conduzo

parece que se volta dignamente a vós:

porém vos rogo que o entendais“.

(Dante, II Convivio; Primeira Canção.)

 

Há muito mais cultura nesses versos do que nosso vão olhar moderno pode ver. Somente uma leitura atenciosa, onde se busca o significado dos termos utilizados pela mente medieval do grande discípulo de Virgílio, pode nos fazer chegar ao seu entendimento. Mas, com auxílio do próprio Dante, adentremos um pouco na camada mais profunda do poema (embora ainda fiquemos no sentido literal do texto):

Para alcançar um entendimento mais claro do primeiro verso faz-se necessário, antes, compreender o que é o “terceiro céu” do qual Dante fala. Comecemos por estabelecer que a cultura medieval — da qual Dante é expoente máximo, é bom lembrar — reconhecia baseada em Aristóteles, em Ptolomeu e nas Sagradas Escrituras, que existiam nove céus móveis, nos quais os planetas (ou esferas) circulavam pelo orbe celeste. Aristóteles cria que fossem oito, mas Ptolomeu definiu, com base na observação do movimento da oitava esfera, que existia outro céu móvel para além do estrelado. A ordem dos Céus, seguindo a exposição dada por Dante no livro “II Convivio”, é a seguinte:

O Primeiro é aquele em que se encontra a Lua; o segundo é ocupado por Mercúrio; o terceiro é aquele onde está Vênus; o quarto é onde o sol habita; o quinto é o céu de Marte; o sexto é a morada de Júpiter; o sétimo é o de Saturno; o oitavo é o céu estrelado, ou seja, aquele das estrelas; o nono, por fim, é chamado de Céu Cristalino. Além de todos estes existe, ainda, o Céu Empíreo, que por sua vez é imóvel; o lugar, segundo a tradição católica da época, onde habita a Suma Divindade, o Motor Imóvel de Aristóteles, o mundo superior —segundo o livro “De Caelo et Mundo” do Estagirita.

Uma vez que expomos brevemente a ordem celeste na qual Dante baseou-se, podemos mais facilmente compreender a qual Céu o Sumo Poeta refere-se no verso inicial do poema: o terceiro céu trata-se do céu de Vênus.

Dito isso, tratemos agora sobre aqueles que o movem.

Primeiramente trata-se de inteligências sem corpos, ou seja, seres angelicais; assim como no caso da ordem celeste que tratamos acima, existe sobre eles toda uma gama de explicações e crenças antigas e medievais nas quais Dante baseia seu verso. Ao longo da história surgiram várias opiniões a seu respeito. Aristóteles, por exemplo, acreditava que o número de anjos (embora não os chamasse assim) eram limitados ao número de movimentos celestes. Platão, contudo, declara que há tantas dessas inteligências quantas são as essências das coisas e as denominava por “idéias”.

É de consenso em todas as religiões antigas que tais seres estão em estágio superior ao nosso, porque vivem a beatitude perfeita, a qual ainda não gozamos — uma vez que somos seres sensitivos, embora gozemos tanto da virtude ativa quanto da contemplativa, que é a mais perfeita. Aqueles seres, portanto, vivem exclusivamente da especulação. Assim como são três as Pessoas da Divina Trindade, são três as hierarquias angelicais, e cada hierarquia se divide em três classes, ou ordens, completando seu número em nove.

A primeira é a classe dos anjos, a que se segue é a dos arcanjos, a terceira e última desta hierarquia é a dos tronos. Esses são os mais baixos da hierarquia. Mais acima se tem as dominações, as virtudes e os principados. Por fim, e na hierarquia mais alta, encontram-se as potestades e os querubins e, por fim, e no lugar mais elevado, os serafins. Segundo a narrativa bíblica, o profeta Ezequiel viu os querubins com quatro faces: homem, leão, boi e águia; e o profeta Isaías viu os serafins ao redor do trono de Deus proclamando a santidade e a glória de Deus Pai uns aos outros. Em sua visão, Isaías os descreve como sendo seres com seis asas, das quais duas usavam para cobrir o rosto, duas para cobrir os pés, e duas para voar.

Falamos antes da Trindade e Sua relação com as classes angelicais; especificando, e ainda seguindo a explicação dada por Dante na obra II Convivio: a classe mais alta da hierarquia relaciona-se com Deus Pai, ou seja, com o Sumo Poder; a do meio, a segunda classe, tem relação com o Filho, a Suma Sabedoria; por fim, a classe mais baixa está ligada ao Espírito Santo, isto é, a Suma Caridade. Por esta ser a categoria mais baixa, portanto, a mais próxima a nós, homens, é por meio dela que nos são dispensados os dons do Espírito.

Os números das classes angelicais fazem referência ao número dos Céus e são nove, assim como nove são os céus em movimento que descrevemos no início deste texto. Cada classe está encarregada — segundo a tradição acumulada pelos medievos e da qual o poema de Dante nos dá uma amostra — do movimento de um céu, ou, numa linguagem mais atual, do movimento de um planeta: a classe dos anjos é encarregada de mover a Lua, a dos arcanjos move Mercúrio, e os responsáveis pelo céu de Vênus (isto é, o terceiro céu) são da ordem dos tronos. Estes movimentam-se no puro amor, e por meio desse céu irradiam um ardor fervoroso aos homens apaixonados. Por isso os antigos tradicionalmente disseram ser o Amor filho de Vênus, tal como exposto na Eneida de Virgílio (grande mestre de Dante e poeta que lhe serve de guia no Inferno e no Purgatório em sua Comédia) e nas Metamorfoses de Ovídio. Portanto, agora que sabemos que são os tronos os seres responsáveis pelo governo do terceiro céu — o céu de Vênus, o céu do amor — fica mais fácil compreender o pedido que Dante faz no primeiro Verso de seu poema:

“Vós que com o intelecto (com a inteligência, uma vez que são desprovidos de matéria) “o terceiro céu moveis, ouvi o raciocinar de meu coração” – a palavra “ouvi” aqui não está se referindo à audição de algum som, pois os tronos, aos quais Dante faz o pedido, são desprovidos de corpos por serem inteligência pura. Logo, “ouvi” significa “compreendam o que se passa em meu coração”, isto é, “em meu íntimo”; o poeta convida os anjos do amor a sondar seu coração angustiado.

Uma vez tendo convocado os tronos para compartilhar de seus sentimentos, Dante expressa as razões pelas quais os chama: “Que não sei dizer a outrem, tão novo me parece” – ou seja, a primeira razão é a novidade da situação, o poeta nunca havia tido tais experiências. A segunda razão pela qual convoca os seres angelicais é justamente a influência do céu do amor pelo qual estão encarregados, o terceiro céu, isto é, Vênus.

No último verso, Dante demonstra que, de alguma forma, o mesmo movimento que o pôs na presente situação, ou seja, as influências do céu do amor, levaram-no de volta a este céu a fim de contar suas tristezas a quem melhor possa compreendê-las: o amor traz questões; o mesmo amor dá respostas:

 

“O céu que segue vosso valor, gentis criaturas que sois,

me transporta na condição em que me encontro.

Por isso o falar da vida que conduzo,

parece que se volta dignamente a vós”.

 

Assim concluímos nossa análise desta pequena amostra de grandiosidade, beleza e riqueza da cultura medieval. Cultura na qual Dante encontra-se assentado como um rigoroso guardião que exige sinceridade, reverência e esforço para, então, abrir as portas de sua alma para aqueles que tomarem a sábia decisão de caminhar com ele; tomando-o por guia; segui-lo como ele seguiu a Virgílio na Comédia.

P.S.  O poema conta com sete estrofes. Aqui, analisamos apenas a primeira e somente o sentido literal do texto.

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