O dia em que esqueci meu livro em casa — ou o livro de menina
Sem ter o que fazer nos intervalos entre as aulas, e em busca de um antídoto para o tédio, decidi escolher alguma obra da biblioteca da escola onde trabalho.
Sempre tive um certo preconceito com o livro O Mundo de Sofia. Imaginava ser livro de menina ou literatura adolescente — e talvez seja mesmo — e não há coisa mais incrivelmente tediosa que a literatura que se produz hoje em dia para jovens e crianças. É sempre aquela saturadíssima história de personagens deslocados do mundo, mal compreendidos pelos pais e pela sociedade ou descobrindo as ilusões do primeiro amor. Nada que já não tenha sido abordado infinitas vezes em filmes e séries da Netflix. Aconteceu de há pouco dar-me conta de ter esquecido em casa o livro que estou lendo no momento — e acreditem, não há nada mais frustrante que abrir a mochila em alguma fila de banco, ponto de ônibus ou horário vago no trabalho, e descobrir que não se está com um livro a tiracolo.
Sem ter o que fazer nos intervalos entre as aulas, e em busca de um antídoto para o tédio, decidi escolher alguma obra da biblioteca da escola onde trabalho. São poucos exemplares, a maioria material didático chatíssimo, mas, entre capas coloridas, livros que se tornaram roteiros para séries teen e contos africanos que tenho certeza que não são contados aos filhos pelos pais da África, lá estava ele: em sua reconhecível capa laranja, com os dizeres em formato de onda (ou caminho, sei lá): O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder. Seguido da propaganda: "Mais de um milhão de exemplares vendidos no Brasil". Decisão inteligente do marqueteiro — pensei; afinal, quem não se sente instigado a ler um livro que mais de um milhão de outras pessoas já leu? Saber que tal obra é um best-seller desperta, pelo menos, curiosidade no possível leitor. Como dizem: a propaganda é a alma do negócio.
O certo é que peguei o livro, ignorando os exemplares de Sherlock Holmes que — só então notara — estavam na prateleira de cima. Mas nem sei por que senti-me traindo o Connan Doyle como a um amigo, uma vez que li e reli já não sei quantas vezes as aventuras de seu detetive de mente sobre-humana. Digo sobre-humana, ou super-humana, para não dizer mística, uma vez que o senhor Holmes gabava-se de sua mente demasiada lógica, não dada à superstições e crendices. No entanto, acredito piamente que o maior detetive do mundo — o Batman roubou esse título, nerd —, sendo dedutivo o quanto quiser, não tendo conhecimento de todos os fatos, só pode ser que faça uso da adivinhação para resolver seus enigmas. Mas isso é assunto para outro momento. Voltemos ao livro de capa laranja.
Acabo de terminar o primeiro capítulo e gostaria de registrar que estou achando a leitura agradável e interessante. Parece-me um trabalho sério, mesmo a personagem principal tendo um gato que se chama Sherekan (o que põe um risinho automático no rosto do leitor brasileiro). A questão é que eu não fazia idéia de que trata-se de um romance que visa percorrer toda a história da filosofia, deixando o leitor a par de todas as principais correntes filosóficas. Isso, por si só, já chamou muito minha atenção. O que, a bem da verdade, não é muito difícil, pois fiquei de queixo caído quando vi um ônibus "minhocão" pela primeira vez. É o futuro — dizia para o passageiro ao lado, que provavelmente julgava ser eu um jeca do interior visitando algum parente na cidade.
Outra coisa que me atraiu no livro é o fato da história começar sem enrolação; em poucas páginas já vemos Sofia filosofando com as questões enviadas a ela anonimamente pelo correio. E mais: apenas uma frase de Goethe separa o leitor do início da obra. Nada de introdução ou de prefácios enormes que abusam da paciência do leitor. Aqueles que disputam lugar com o livro de tão grandes que são. Sério, outro dia peguei uma edição da Eneida para ler e o sujeito que escreveu o prefácio aproveitou o espaço para publicar seu livro. Não o julgo, talvez seja essa a única chance de ter uma obra sua literalmente ao lado de um clássico da literatura mundial. O problema é que ninguém compra Virgílio esperando ler primeiro, por mais méritos que tenha, um livro inteiro sobre a obra.
Enfim, não posso dizer que irei deixar de lado os livros que estou lendo no momento, mas é bom saber que já tenho algo para ler quando esquecer meu livro em casa. E dado minha cabeça de vento, como atestam amigos e familiares, é certo de esquecer novamente. E nesses momentos estarei tranquilo no Mundo de Sofia que, segundo o marqueteiro, teve mais de um milhão de exemplares vendidos no Brasil
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