Opinião

As festas juninas e/ou o São João do Maranhão

Viva o povo do Maranhão. Viva as festas e brincadeiras juninas do Maranhão que, para o engano do que falei no começo do texto, ainda continuarão por todo mês de julho.

Por: Marcos Lobo

Atualizada em 06/07/2023 às 07h16
O sincretismo é marca das nossas festas.
O sincretismo é marca das nossas festas. (Foto: Divulgação)

No dia 30 de junho foi fechado o ciclo desse ano para a nossa peculiar festa junina.

A lembrança que tenho do meu primeiro encontro com o boi é que aconteceu em Chapadinha num evento ocorrido na praça principal promovido pela Mobralteca. Ainda lembro da capa do disco: “Bandeira de Aço”.

Cantava Papete:

Sinto frio e vergonha

E não cabe no meu peito

Porque tenho que enganar

O meu boi com os pensamentos

Mas lá perto da fogueira

Minha nega me espera

Arredia e preguiçosa

Com criança na barriga

Cheia de desejamento

 Ai essa dor de ver

Meu boi indo me olhar

E sem nada saber

Sem se defender

Chora meu boi

 Ai bumba boi

Bumba, bumba

Me perdoa por querer

Tua lingua só pra dar

Pra essa nega Catirina

(Boi de Catirina)

A música entrou pelos ouvidos e se impregnou em mim para não mais sair, como a despertar minha ancestralidade, afinal, eu sou um mestiço, a funcionar o DNA da mistura de brancos, negros e indígenas.

Com Ivandro Coelho e Edgar Morin digo eu: “(…) De repente, o boi que eu conhecia do dia a dia — aquele animal de pasto e de carga, comum na paisagem do interior do Maranhão — tinha se transfigurado. Transformara-se num boi alado, flutuante, que fazia par com a lua. E mais: um boi com “olhos de papel de seda e estrela na testa”; que chorava e pedia esmola para uma “boneca de anil.” Que maravilha! Real e imaginário estavam ali intimamente entrelaçados, enriquecendo minha experiência, mostrando, como ensina Morin (1997, p. 261), que esses dois polos “estão co-tecidos e formam o complexus de nossos seres e de nossas vidas”. (…)” (Cultura e Imaginário: Imagens e Simbolismos nas Toadas de Bumba Meu Boi do Maranhão – Ivandro Coelho).

Depois já “homem-feito” fui chamado a ajudar, como advogado, na elaboração do estatuto da Liga Independente do Bumba-Meu-Boi do Maranhão – LIBMA. Foi nessa época que estive mais próximo dos fazedores dos bois Lobato (Boi de Morros), Leila (Boi de Axixá), Concita (Boi de Nina Rodrigues), Maria de Humberto (Boi de Maracanã),Zé Inaldo (Boi da Maioba), Ze Olhinho (Boi de Santa Fé) e Claudinho (Boi Brilho da Ilha).

Dizem (eu mesmo não posso assegurar) que as festividades de junho têm origem em festas, festivais e rituais pagãs da Europa, quando se comemorava as colheitas e se prestava homenagens e se dedicava preces e agradecimentos aos deuses, mitos, fadas etc.

Com a chegada do cristianismo estas festas foram “adaptadas” para os seus rituais e mudados os donos das festas para os seus santos, que hoje ainda são os nossos (Antonio, João e Pedro).

Daí é que, invadido o Brasil, houve o transplante das festas do solstício de verão europeu, já com as vestes do cristianismo, para os nossos trópicos e por aqui a ocorrer a fusão com as danças franceses e portuguesas também transplantadas para o nosso chão.

Se a Europa, tão acostumada com as guerras, hoje enfrenta o triste combate de balas, bombas e mísseis entre Rússia e Ucrânia, aqui explodem bombas, foguetes e rojões para celebrar a alegria das festas juninas.

No Maranhão, para além do que ocorre nos demais estados, as festas juninas são muito mais do que as outras porque ampliadas e diversas são as manifestações e as comidas da temporada.

O São João maranhense, dentre todos, é mais includente, diversificado, embelezado e saboroso. Tem quadrilha (tradicionais e estilizadas), forró (“tanto queima como atrasa” – De Teresina a São Luis – João do Vale) e o milho e seus derivados – o chão comum –, mas é maior em luzes, cores, sons, rituais e deslumbramento, alimentado pelo arroz de cuxa, as tortas de caranguejo e camarão, o peixe pedra etc.

O boi e seus sotaques (zabumba ou guimaraes, matraca, orquestra, baixada, costa-de-mão, caixa, alternativos e os mistos e misturados), o cacuriá, o tambor de criola, a dança do coco, a dança portuguesa etc. Uma alucinante overdose de contentamento aos sentidos.

O boi é o protagonista da festa, com seus personagens a bailar nas suas toadas ritmadas por matracas, pandeirões, tambores-onça, caixas, tarois, pandeirinhos, maracás, tantãs, zabumbas, saxofone, clarinete, banjo, pandeiros, sinos de boi e badalos de mão.

Os nossos seres e espíritos encantados, as nossas metamorfoses, os nossos elfos, fadas, duendes, no boi, são representados pelos brincantes que encarnam o próprio boi, o caboclo de pena, o caboclo de fita, o vaqueiro, os índio, as índia, a mutuca, o miolo, pai Francisco, Catirina, cazumba ou cazumbá, burrinha e campeadores que se enfeitam com vestimentas, chapéus, cocares repletos de penas, veludos, fitas, miçangas, canutilhos, grinaldas de flores, luzes, tudo de um beleza resplandecentemente colorida que, ao som das toadas, levam a todos a um encantamento inebriante, brincantes e plateia.

E nós aqui do Maranhão fomos mais adiante. Até santo tem mais que os outros. Além de Santo Antonio, do São João e do São Pedro temos o São Marçal, santo somente nosso nas festas juninas.

O boi do Maranhão baila na rua, no palco, nos arraiais e nos terreiros. É urbano e rural. Não há disputa entre os bois. Não são feios ou bonitos, são todos encantamentos.

O boi é história de amor. O amado que arranca a língua do boi para satisfazer o desejo da mulher amada.

É magia que faz o boi renascer. O nosso boi é lenda, é a nossa fênix.

O boi é teatro: o auto do boi.

É mitologia, é o nosso Minotauro, o homem (o miolo) com cabeça de boi.

É o nosso cordeiro, sacrificado e ressuscitado.

O boi é poesia:

Eu fiz uma gaiola de ouro, pra prender teu coração

Eu fiz uma gaiola de ouro, pra prender teu coração

Mas o amor que é duradouro

Não quer viver numa prisão

Tu podes prender um passarinho

Mas o canto dele não

Tu podes prender um passarinho

Mas o canto dele não

Voa, voa passarinho

Passarinho cantador

Voa, voa passarinho

Passarinho cantador

E trás a felicidade que está na liberdade do amor

(Gaiola de Ouro – Godão – Boi Barrica)

“Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelo

E eu fica com ciúme do perfume ele tirar”

(Bela Mocidade – Donato – Boi de Axixá)

O sincretismo é marca das nossas festas. O religioso, o pagão, o profano e o mundano se encontram no mesmo lugar.

Também é preciso dizer, com Ivandro Coelho, que “(…) compreender o bumba meu boi a partir do olhar da complexidade é admitir a existência de polos opostos que se entrelaçam e se alimentam, se constroem e se regeneram, agindo e retroagindo uns sobre os outros. Morin me ajuda, assim, a compreender o bumba meu boi como algo complexo. Como manifestação ancorada na vida e que envolve pessoas, fazeres, cantos, danças, músicas, rezas, memória, tradição.” (Cultura e Imaginário: Imagens e Simbolismos nas Toadas de Bumba Meu Boi do Maranhão – Ivandro Coelho).

No Maranhão, ouso ir mais adiante, para dizer que aconteceu a mistura maior de carnes e espíritos ocorridas no Brasil de europeus, indígenas e africanos, que fez surgir um novo povo que não é nenhum desses e, ao mesmo tempo, é todos eles, numa fusão de tudo e todos, no que Darcy Ribeiro diz ser “Nesse campo de forças é que o Brasil se fez a si mesmo, tão oposto ao projeto lusitano e tão surpreendente para os próprios brasileiros. Hoje somos, apesar dos lusos e dos seus colonizadores, mas também graças ao que eles aqui nos juntaram, tanto os tijolos biorraciais como as argamassas socioculturais com que o Brasil vem se fazendo.” (O Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro).

Nos misturamos mais que os outros, nós maranhenses. Nossa miscigenação foi mais ampla e profundada, a produzir múltiplos folguedos nas nossas festas juninas, resultado da fusão cultural de todos os povos que nos deram origem.

É o ateu que passa a noite a bailar nas musicalidades de todas as cores que, ao amanhecer, com todos os sentidos inebriados pelas mundanidades, vai, no dia 29 de junho, aos pés de São Pedro, em êxtase, pedir bênçãos e rezar ao som de todos os sotaques dos nossos bois.

É sincretismo e misticismo “na veia”, é a marca registrada, ainda sem QR Code, de “uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.” (O Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro).

É “uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro.” (O Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro) e que se expande a dar em novos sons, cores e rituais a todo que veio antes e se misturou.

Viva o povo do Maranhão. Viva as festas e brincadeiras juninas do Maranhão que, para o engano do que falei no começo do texto, ainda continuarão por todo mês de julho. Viva Roseana Sarney que botou o boi para brincar no mês de julho (Vale Festejar). Viva o governador Brandão que resgatou essa transgressão de prorrogar a nossa festa junina. Será no futuro essa festa “julina” uma tradição? Tomara, alvissaras. “Urrou, urrou, urrou, urrou” (Urrou do boi – Coxinho).

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