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COLUNA

Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Tabuleiro

O rosto, tracejado pelos rastros do sol diário em sua empreitada pela sobrevivência.

Kécio Rabelo

Atualizada em 30/05/2023 às 16h06

Sexta à tarde em frente à secular Biblioteca Benedito Leite. Ambulantes e pedestres se esgueiram para debaixo dos redários a fim de protegerem-se do vento forte e da trovoada, que é precursora das chuvas na Ilha. No corre corre a praça fica vazia. Apenas o panteão com os bustos dos personagens notáveis de nossa história, indiferentes e inertes, seguram firmes: na companhia um do outro, parecem aproveitar para refrescarem-se do calor da exposição permanente ao sol. O temporal desaba. Em questão de minutos, das escadarias íngremes da Biblioteca deságua elegante a correnteza, a tomar a praça e a lavar as marcas que deixam os pombos no dia a dia de seus afazeres por ali.

Descendo a rua da Paz, esquina com rua de Santaninha, uma senhora que tem nas mãos um tabuleiro de pirulitos de açúcar, desses que adoçaram tantas infâncias. Seus cabelos molhados caem sobre a testa franzida. O rosto, tracejado pelos rastros do sol diário em sua empreitada pela sobrevivência. Com as ruas vazias e o sol já caindo, o caminho de dona Justina será o de sempre: descer a rua da Paz, atravessar a João Lisboa e chegar à Praia Grande, nas imediações da praça Nauro Machado. E embora a chuvarada incessante dê sinais de que não irá arrefecer, ela segue em frente, avançando com seus passos cansados, mas determinados. Às vezes se apressa, às vezes vacila, em busca de um necessário abrigo. Numa dessas paradas, calçada do Palácio das Lágrimas, frente à Igreja de São João, ouve um rogo. É um menino, calção e camisa molhados, um morador das redondezas, provavelmente. Com seus olhos arregalados, ele pede:

– A senhora me dá um pirulito?

– Não senhor, onde já se viu! – responde Justina, certa de que de jeito nenhum desembalaria seu tabuleiro, nem para vender, muito menos para dar um pirulito.

– Mas estou com fome – retruca o garoto.

– Já viu açúcar matar a fome de alguém? – resmunga Justina, apressando os passos.

Insistente, o garoto, que em algum momento diz se chamar Benito, a segue. Ao chegarem ao Largo do Carmo, ele outra vez suplica, e outra vez Justina o rechaça, completando:

– Não vê que estou com pressa? Preciso chegar logo na Praia Grande.

Benito então dispara, com um ar de quase atrevimento:

– A senhora não sabe que pressa não resolve problema algum?

E quando a velha senhora, ofendida, ameaça lançar a toalha que lhe auxilia dando uma chicotada nas pernas do moleque, ele salta e emenda: – Senhora, nem pressa, nem raiva! Nenhuma das duas resolve nada – E desaparece pelas ruas escuras.

Noite agora. Luzes das réplicas de lampiões coloniais reluzem nas escadarias da rua do Giz, em plena Praia Grande. Naquele ambiente que lhe é tão familiar, Justina avista um amontoado de gente que, em círculo, com suas roupas coloridas, dança e canta ao som de tambores. Desce as escadas largas e aproxima-se. É um Tambor de Crioula pagando promessa para São Benedito. No canto, ao lado esquerdo do altarzinho, a imagem do santo, junto ao qual ela encolhe-se, molhada, segurando firme sua tábua e, com ela, alguns trocados das vendas que conseguiu.

É quando, com um frêmito de irritação, avista outra vez o garoto, que astuto, brincando de não a conhecer, aproxima-se com o mesmo pedido nos olhos. E dessa vez Justina nem espera que ele abra a boca. Louca para livrar-se do tormento, desenrola o tabuleiro, onde, para sua surpresa, não encontra mais nada. Em vez de pirulitos, só talos, grude e prejuízo, tudo foi derretido pela chuva.

Ela encara o menino, frustrada. Ele, igualmente entristecido, termina por encolher os ombros, conformado, e faz uma proposta.

– Que acha da gente fazer uma promessa também?

– Promessa pra quem, menino?

– Para São Benedito, esse senhor que está na casinha.

– Vamos pedir o que?

– Que a pressa não nos cegue os olhos, que a raiva não nos roube a paz, que a fome não nos mate de estômagos cheios.

Já passava das 22 horas, um chuvisco teimoso ainda caía. Justina deixa a roda e vai atrás do menino, que segue pela rua Portugal.

– Moleque! Venha aqui – ela grita. No primeiro degrau da escada do beco da Catarina Mina, os dois se sentam. Espantada com tudo que está acontecendo, intrigada com as palavras que ouviu, Justina faz perguntas.

– Onde moras, Benito? Aonde vais?

A conversa entra pela madrugada. Uma revoada de pássaros anuncia a preamar.
E o tabuleiro de pirulitos? A pressa deixou para trás.

 

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