Conversar com Boni é um exercício enriquecedor, mas requer concentração, visto que a franqueza não lhe permite mascarar as diversas nuances de sua personalidade. Conhecido como o executivo todo-poderoso que comandou com mão de ferro a TV Globo por 31 anos (entre 1967 e 1998), José Bonifácio de Oliveira Sobrinho pode mostrar-se, dependendo do assunto, sensível, duro, emotivo e até frio.
Duas características, porém, permeiam toda a entrevista: inteligência e bom humor. Personagem – na maioria das vezes, principal – de inúmeras histórias da televisão brasileira desde os primórdios do veículo, ele resolveu contar algumas delas em "O Livro do Boni", com lançamento previsto para esta quarta-feira (30), data em que completa 76 anos. A obra, o autor frisa, não é uma autobiografia.
“Não gostaria de misturar a minha vida pessoal com a televisão por uma simples razão: minha vida pessoal foi colocada em segundo plano”. Atualmente, Boni dedica-se integralmente ao trabalho em sua própria emissora, a TV Vanguarda, afiliada da Globo no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. “Digo que lá sofremos de TOC, nós temos mania de ser vanguarda”, diz ele.
Pai de quatro filhos – o diretor José Bonifácio Brasil de Oliveira, o Boninho, 50 anos, e Regina Helena Brasil de Oliveira Orlandi, 48, do casamento com Regina Boni Brasil de Oliveira; Diogo de Oliveira, 33, da união com Laís Simões; e Bruno Boni de Oliveira, 24, com a atual mulher, Lou de Oliveira, 54, com quem está casado há 27 anos –, ele diz não ter tido muita habilidade com os assuntos familiares.
“Sempre falei que triturei as famílias. Passei no liquidificador”. Sobre os sete netos, sua resposta chega a desconcertar de tão sincera. “Eu tenho uma teoria: não conheço nem a família nem a mulher do Boninho. Como é que o filho dele pode ser meu parente? Não pode ser meu parente”, diz, acrescentando, aos risos: “Sou um avô que presto uma assistência e tal, mas não vem com esse negócio de vovozinho, brincar comigo, encher a casa de neto, que não quero nem saber. Um de cada vez e distante, por favor”.
QUEM: O que o levou a contar suas memórias em um livro?
BONI: O Ricardo Amaral ficou enchendo meu saco porque ele tinha acabado de fazer o livro dele (em 2010, o empresário lançou 'Ricardo Amaral Apresenta Vaudeville: Memórias'). A minha mulher, a Lou, me fez uma ameaça grave, disse que, se eu não fizesse, ela faria. O livro é mais uma homenagem à televisão e aos meus companheiros.
QUEM: O fato de você ter enfrentado um câncer de próstata serviu como incentivo para escrever o livro (a doença foi diagnosticada em 2003 e, em agosto de 2010, houve uma recidiva, tratada com sessões de radioterapia)?
B.: Conscientemente, não. Como perdi meu pai com 7 anos, e ele tinha 33, a minha convivência com a vida muito real esteve desde cedo na minha cabeça. Sempre me considerei transitório. Então, como tive o câncer, estive próximo da morte, nada disso me mudou. Vi como uma coisa natural.
QUEM: Gostaria que alguém escrevesse sua biografia?
B.: Não gostaria de misturar a minha vida pessoal com a televisão por uma simples razão: minha vida pessoal foi colocada em segundo plano. Sonhei fazer televisão e trabalhei naquela época, para montar isso, umas 10 ou 15 horas por dia. Sempre falei que triturei as famílias. Passei no liquidificador.
"Quando mergulho num projeto, vou lá. No caso do meu câncer, o médico disse que eram 38 sessões de radioterapia. Falei: ‘quero 38 dias seguidos’."
QUEM: Tem alguma mágoa?
B.: De ter ficado longe dos meus filhos. Tive pouco tempo com eles... De não ter conseguido equilibrar as coisas e ter vivido de corpo e alma para a televisão. Olho para trás e acho que fui um pouco injusto com os filhos. Podia ter olhado mais por eles.
QUEM: Essa também não teria sido uma injustiça com você mesmo?
B.: Pode ser. Acho que sim. Tenho essa coisa de concentração. Quando mergulho num projeto, vou lá. No caso do meu câncer, o médico disse que eram 38 sessões de radioterapia. Falei: “Quero 38 dias seguidos”. Fiz em 40 dias. Encarei da mesma forma que encarei a televisão. Às vezes, estou escrevendo, me dão um recado superimportante, mas entra num ouvido e sai pelo outro. Não considero que seja um poder de concentração. É um defeito de concentração.
QUEM: Durante 31 anos você foi considerado o todo-poderoso da TV Globo. Foi difícil abandonar o poder?
B.: Não. Nunca usei o poder no sentido de beneficiar a mim mesmo. Usei para andar mais rápido, para tocar as coisas com mais rapidez e consegui realizar o que tinha na minha cabeça. Meu objetivo era fazer uma boa televisão. Não saí correndo para ser o todo-poderoso da TV Globo.
QUEM: Seu patrão na TV Globo, o jornalista Roberto Marinho, lhe dava carta branca para tudo?
B.: Fui patrão e empregado de diversas empresas, mas em nenhum momento tive a liberdade que ele me deu. Quando fomos contratar a Embratel e pôr o Jornal Nacional no ar, que tinha um conteúdo político, levamos ao doutor Roberto o que a gente queria fazer e ele disse: “Não quero nem saber, vocês tomam conta disso. É com vocês”.
QUEM: A sua fama de bravo na Globo condiz com a verdade?
B.: Fui um pouquinho, por necessidade. Acho que tive que assumir o personagem do carrasco, com o chicote na mão, porque senão a coisa não andava.
QUEM: O carrasco já foi embora?
B.: Acho que não. Às vezes, tomo decisões contrariando meus funcionários. Tenho um pouco do aventureiro dentro de mim, mas acho que o aventureiro tem que estar com o pé no chão.
QUEM: Acha que seu filho Boninho poderia substituí-lo, chegar ao patamar que você chegou na Globo?
B.: Comecei na TV Globo aos 32 anos, o Boninho tem 50. Com 32, eu era diretor de programação. Acho é que a televisão precisa de gente jovem no comando. Precisa de alguém que tenha coragem de fazer. Não confie em ninguém com mais de 30 anos.
QUEM: Como surgiu e no que consiste o chamado padrão Globo de qualidade?
B.: Esse rótulo não fomos nós que criamos. Esse rótulo foi criado pela imprensa. Sempre fui intolerante. Éramos um grupo que tinha tolerância zero em relação a erros, a defeitos, a tudo. Cheguei uma vez a mandar refazer quatro capítulos de Gabriela (novela exibida em 1975, adaptada por Walter George Durst, do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado) por causa do esmalte da Sônia Braga (a protagonista), que não estava de acordo com a personagem. Tive grandes parceiros intolerantes, o Daniel Filho, o Borjalo (pseudônimo de Mauro Borja Lopes, diretor-geral da Central Globo de Produção, na época). Eram uns 20 caras lá, chatos pra diabo. Quando ocorria um erro, a gente saía logo vendo normas para que aquilo nunca mais acontecesse.
QUEM: Você trabalhou com as mulheres mais bonitas do Brasil. Foi difícil não se encantar por elas?
B.: Sempre tive muito cuidado de não misturar as coisas. Se tiver alguém querendo crescer na carreira e querendo se aproximar de você, pula fora porque senão você vai perder a televisão inteira. Às vezes, se eu estava num intervalo de um casamento para outro, apareciam namoradas.
QUEM: Foi um conquistador?
B.: Nunca fui, sou muito tímido. Sempre preferi ser conquistado.
QUEM: Como você é como marido?
B.: Sempre fui um péssimo marido, mas não por questão de fidelidade. Saindo do trabalho, cansado, não ia para casa. Ia encontrar o Vinicius de Moraes, o Tom Jobim, tomar um uisquinho com eles para relaxar... Assistia a quase todas as gravações. Esquecia que tinha casa.
QUEM: Como pai, foi intolerante?
B.: Fui bastante com o Boninho, com a Gigi. Cobrava muito. Não estraguei nenhum deles. O Boninho é um bom profissional, a Gigi é uma dona de casa inteligente, criou muito bem os filhos. Não fiquei muito em cima do Diogo, mas ele fez a própria vida, estudou, se virou. Nunca foi preciso mandar o Bruno estudar, tinha era que mandar parar, ele é muito caxias.
QUEM: E o Boni avô?
B.: Meu avô dizia assim: neto não é parente. Tenho uma teoria: não conheço nem a família nem a mulher do Boninho (refere-se à atriz Ana Furtado). Como é que o filho dele pode ser meu parente? Quer dizer, eu conheço a menina, mas a família dela vi poucas vezes. A que casou com meu filho Diogo (a atriz Fernanda Pontes) vai dizer que (o filho) é meu neto – não é meu neto, não conheço aquela família, não sei quem é. Acho que é uma defesa afetiva, restrinjo minha preocupação aos filhos. Não vem me chamar de vovô, nem chegar perto de mim, não. Eu sou um avô que presto uma assistência e tal, mas não vem com esse negócio de vovozinho, de brincar comigo, encher a casa de neto, que não quero nem saber. Um de cada vez e distante, por favor (risos).
QUEM: O que o leva às lágrimas?
B.: Sou um bebê chorão. Choro muito no cinema, às vezes, ninguém chora e eu choro. Já fui tirado do cinema porque estava chorando demais. Assistindo a Cinema Paradiso comecei a soluçar e caí da cadeira.
QUEM: Pensa em se aposentar?
B.: Hoje, não, mas já pensei. Quando saí da Globo, pensei: foi bom, agora vou cuidar de outra coisa, vou fazer minha comidinha para os amigos... Mas, de repente, começou a dar aquele formigueiro, vontade de fazer alguma coisa. Daí, apareceu a oportunidade de fazer a Vanguarda.
QUEM: Está feliz com a TV Vanguarda?
B.: É uma televisão de primeira linha, a primeira emissora 100% full HD da TV Globo. Digo que lá sofremos de TOC, nós temos mania de ser vanguarda.
QUEM: O que vê na TV?
B.: Só jornalismo. Não é porque não ache boas as coisas que estou vendo, é que na realidade fico trabalhando, né?... Olho o cabelo daquela mulher, olho a roupa daquele troço... Ih, o diretor mandou o cara gritar demais... Tenho implicância com grito na televisão. O espectador, coitado, é inocente, não é preciso gritar com ele.
QUEM: Quem é o grande artista do momento?
B.: Acho que grandes nomes, como Silvio Santos e Chacrinha, não vão aparecer mais. A televisão entrou num processo industrial que não permite mais esse individualismo. De todos os apresentadores, sobrou Fausto Silva, Luciano Huck e Ana Maria Braga, remanescentes de um processo em exaustão. Acho que o Luciano ainda tem vida pela frente, mas não vai surgir uma nova Hebe Camargo, uma Ana Maria Braga ou um Faustão. Pode ser que aconteça como uma casualidade. O Silvio Santos tentou várias vezes, com várias pessoas boas, e não conseguiu.
QUEM: Silvio deu trabalho quando foi funcionário da Globo (Silvio Santos foi apresentador na emissora durante 11 anos, entre 1965 e 1976)?
B.: Deu um pouco de trabalho, mas ajudou muito. Para promover é preciso ter um programa para anunciar. Naquele tempo, em São Paulo, tínhamos o Silvio. A TV dava 5 pontos, mas ele dava 40. Eu pedia ajuda para promover a novela, o Chacrinha, e o Silvio era muito receptivo. Até dinheiro emprestou para a emissora. Cobrava com juros. É judeu, não poderia ser diferente. Considero-o muito importante, foi o único profissional de TV que conseguiu ter sua rede nacional. Tenho a minha TV, a Vanguarda, mas é um negócio pequenininho. Tem que tirar o chapéu para ele.
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