Herbert Vianna comemora o milagre de sua sobrevivência e a volta dos Paralamas

O Globo

Atualizada em 27/03/2022 às 15h30

Ainda que tivesse passado quatro dias sepultado numa gruta, e dela saído andando, as pessoas não se aproximariam dele com tanta admiração e respeito. Qual Lázaro, porém, Herbert Vianna é hoje um milagre. No começo da tarde de anteontem, pouco mais de 12 horas depois de ter tocado 17 músicas (e bisado cinco) no palco do Projac, em Jacarepaguá, onde os Paralamas do Sucesso gravaram um show para exibição no “Fantástico”, o cantor e guitarrista está sentado no camarim dos estúdios da EMI, em Botafogo. Inteiro, muito bem-disposto, dedilhando um violão, submetendo-se pacientemente à estafante rotina de entrevistas para divulgar o 15º álbum do trio, o belo “Longo caminho”. De vez em quando, o baterista João Barone boceja de cansaço.

— Não diria que é um milagre por ter eu sobrevivido ao acidente em si — diz Herbert, aos 41 anos, renascido do acidente de ultraleve de 4 de fevereiro de 2001. — Mas porque estou vivendo com os meus três filhos sem a Lucy.

Cantor não gosta que chorem por ele - Eram casados desde 1991. Como seqüela, Herbert está paraplégico e sem parte da memória, sobretudo a que armazena fatos mais recentes, o que inclui não apenas o vôo fatídico como todo e qualquer outro. Não faz de suas dificuldades um drama. Não gosta que as pessoas chorem na sua presença. Para quem passou quase dois meses lutando no hospital, onde teve de retirar tecido necrosado do cérebro, está muitíssimo bem, ansioso para voltar aos palcos, o que deverá acontecer em novembro, com um fim de semana de shows em João Pessoa, sua cidade natal, e Recife.

O show para o “Fantástico” serviu como teste de esforço. Por quase duas horas cantou velhos sucessos, como “Meu erro” e “Ela disse adeus”, e novas belezas, como “Seguindo estrelas” e “Cuide bem do seu amor”. Na platéia, pulando ou sentadinhos, seus filhos Luca, de 10 anos, Hope, de 7, e Phoebe, de 3.

— Acordo na hora em que as crianças estão indo para o colégio — conta, descrevendo sua rotina nos últimos meses. — Tomo os remédios nos horários certos. Procuro alguma coisa de interessante na TV por satélite. Mas fico muito tempo no meu estúdio, com minha coleção de instrumentos, lembrando-me de coisas que eu sabia fazer no Pro Tools (programa de gravação). Com um gravador sempre pronto para captar qualquer flutuação de idéias, um violãozinho ou uma tentativa de melodia. Nem sempre tenho tudo tão claro.

Fora do palco, se a memória falha, Barone e o baixista Bi Ribeiro se apressam em socorrê-lo. Estão há 20 anos juntos, tanto tempo que, de fato, constitui uma vida em comum. No palco, a memória de Herbert está quase intacta. Os amigos e companheiros de banda — no caso deles é realmente difícil dizer o que vem primeiro — têm sido fundamentais na sua recuperação.

Em meados de maio do ano passado, os dois já estavam no estúdio da casa de Herbert, em Vargem Grande, puxando por ele, tocando canções das antigas, tentando retomar a idéia de fazerem um disco centrado na crua tradição roqueira do power trio (de grupos como The Who, Jimi Hendrix Experience, Cream, The Jam, The Police).

— Tocar com ele era o que podíamos fazer para ajudar — explica Bi.

Para surpresa geral, os progressos de Herbert logo deixaram claro que levar a carreira dos Paralamas adiante não era um sonho. Apenas questão de tempo. E foi-se urdindo o disco a partir de nove músicas inéditas, todas compostas antes do desastre.

A música que puxa o disco para as lojas — onde deverá chegar na segunda-feira — é “O calibre”, sobre violência urbana, tema presente no terceiro trabalho solo do guitarrista, “O som do sim”. As duas já conhecidas do CD são “Soldado da paz”, do próprio Herbert, gravada anteriormente pelo Cidade Negra, e “Running on the spot”, cover do Jam. A seqüência das faixas, da desesperada “O calibre” até a plácida “Hinchley Pond” (Hinchley é a fazenda perto de Birmingham onde nasceu Lucy Needham; lá há um lago) foi pensada pela banda como o roteiro de um filme média-metragem, menos de 36 minutos.

— A gente seqüenciou o disco de acordo com certas idéias — diz Barone. — Essa última, por exemplo, é o final dos filmes do Chaplin.

Entretanto, não há nenhum the end à vista. Eterno angustiado pelo próximo trabalho, Herbert já recomeçou a criar a partir de uma composição que fizera para Ivete Sangalo, a popularíssima “Se eu não te amasse tanto assim”. Por considerá-la “mela-cueca, muito romântica, muito derramada” para os Paralamas, ele decidiu fazer uma versão em inglês, “muito sofisticada”. Afinal, o nome do novo CD é “Longo caminho” — canção que estava com Zélia Duncan, que gentilmente a devolveu — e não “Fim do caminho”. A fé o sustenta desde muito antes do acidente, desde antes até de Lucy.

— Certa vez fui a um centro espiritualista de confiança — lembra Herbert. — Para me consultar sobre a questão do trabalho, sobre a coisa afetiva. A guia, falando com a voz de um preto-velho, disse-me: “Você ainda não conheceu a pessoa.” Para evitar a sofreguidão, quando conheci a Lucy, tentei não pensar se era ela a pessoa. Só me lembrei disso tempos depois, de estalo, no dia do casamento, na Inglaterra. Já cheguei à igreja muito comovido.

Herbert já assume a nova namorada - A memória de Lucy continua muito forte. Herbert fala da mulher com a serenidade de quem a considera para sempre presente. Elogia sua capacidade de se adaptar bem, pessoal e profissionalmente, ao país no qual decidiram morar. Entre outras coisas, recorda, orgulhoso, que Lucy produziu inúmeros programas de TV e escreveu um guia, “Viajando com as crianças”, publicado em 1997. Recorda, também, as férias despojadas passadas no litoral da Paraíba, entre João Pessoa e Cabedelo. E confessa que só não se arriscou mesmo foi a levá-la aos bailes de carnaval locais. Temia que ela se interessasse por outro que ele nem percebesse como interessante...

Agora, sem Lucy, Herbert percebe outra mulher interessante, a publicitária Ana Beatriz Tancredo, velha amiga da família. Fala da namorada com carinho:

— É uma pessoa muito próxima, que tem sintonia com a família e com as crianças. Tem filho na idade entre a do Luca e a da Hope. É uma coisa positiva e 100% honesta. Astral total. Fomos meio atropelados pelos acontecimentos e ela fez questão de dizer que eu só deveria tocar no assunto no dia em que tivesse isso claro.

As coisas estão cada vez mais claras. Em “Longo caminho”, Bi transforma as cordas do baixo em tendões do pescoço, Barone bate tambores pinçando pontos de tensão e Herbert toca guitarra e canta forte, como se sua vida dependesse disso. Porque depende.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.

Em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) - Lei nº 13.709/2018, esta é nossa Política de Cookies, com informações detalhadas dos cookies existentes em nosso site, para que você tenha pleno conhecimento de nossa transparência, comprometimento com o correto tratamento e a privacidade dos dados. Conheça nossa Política de Cookies e Política de Privacidade.