BRASIL - Para Marcelo Botta, diretor e roteirista de ‘Betânia’, o filme se impôs a ser realizado naquele momento, ao fim da quarentena. "Quando surgiu a primeira ideia de fazer Betânia, senti uma coisa tão forte que logo comprei as passagens para o Maranhão. A intenção era ir só para fazer a pesquisa, mas conforme fomos falando com a equipe, todos foram se empolgando. Um mês depois já estávamos filmando." Agora, o longa produzido pela Salvatore Filmes estreia no Festival de Berlim, que acontece entre 15 e 25 de fevereiro.
O longa será apresentado ao público de Berlim em 6 sessões dentro do programa da Panorama, sessão favorita do público, que, nas palavras da organização, apresenta filmes extraordinários sempre em busca do que há de novo, ousado, pouco convencional e selvagem no cinema atual. Uma seleção de filmes em que é possível encontrar talentos jovens de todo o mundo e trabalhos mais recentes de cineastas renomados.
‘Betânia’ compete em diversas premiações na 74ª Berlinale, incluindo o Prêmio da Audiência e o prestigiado GWFF entregue ao Melhor Primeiro Longa de toda Berlinale, onde Botta concorre, inclusive, com cineastas da principal mostra competitiva do Festival de Berlim.
Rodado em 25 diárias, divididas em duas épocas distintas, acompanhando o período de cheia e de seca dos Lençóis Maranhenses, o longa traz como protagonista a parteira Betânia (Diana Mattos), nascida no povoado de mesmo nome. Em decorrência da falta de energia elétrica, ela perde seu marido e encontra na comunidade a energia para começar uma nova jornada aos 65 anos.
Filmar nos Lençóis Maranhenses não era novidade para Botta. Em 2018, realizou uma série documental mostrando jornadas inspiradoras de pessoas que vivem em lugares isolados da Amazônia, Patagônia, Atacama, Bolívia, Peru e Colômbia. E o último episódio foi filmado nos Lençóis Maranhenses, contando a história de Dona Maria do Celso, moradora da Ponta do Mangue que o inspirou a escrever Betânia.
“Nunca esqueço da lúcida revolta da líder comunitária dos Lençóis Maranhenses ao falar de seu marido, que foi morto pelo sal. Morto pela dieta que é consequência de uma vida sem energia elétrica. Três anos mais tarde, durante a pandemia, compreendi ainda mais a revolta de Dona Maria, pois me sentia impotente diante do genocídio que acontecia no Brasil”.
O desafio de filmar numa região tão remota foi justamente o que animou a equipe de filmagem. “Era a nossa chance de experienciar a descompressão de uma maneira extrema. Foi um salto muito grande sair de um lockdown confinado dentro de casa por quase dois anos para vivenciar um set naquele cenário de paisagens gigantescas que nos faziam sentir minúsculos. Era o sentimento exatamente oposto ao clima claustrofóbico ao qual todos fomos submetidos durante o necessário confinamento.”
Com um elenco composto exclusivamente de moradores e moradoras do Maranhão – inclusive os personagens franceses são interpretados por imigrantes que moram lá há 10 anos –, Botta coloca na tela atores e atrizes estreantes que se revelam donos e donas de um talento nato.
Diana Mattos, a atriz que faz a protagonista, é funcionária pública em São Luís e palhaça em apresentações para o público infantil. Sua única aparição no cinema foi em um plano detalhe de sua mão no filme Carlota Joaquina.
"Vi a Diana Mattos pela primeira vez numa foto publicada no Instagram da atriz Michelle Cabral. Era uma foto com várias pessoas ao redor de uma mesa, mas quando olhei para a Diana senti que ela tinha a vibração que Dona Betânia pedia.” conta o cineasta.
Já para o papel do menino Antônio Filho, Botta conta que sentia que tinha que ser um morador dos Lençóis e, na fase de pré-produção, a equipe encontrou Ulysses Azevedo na praça, durante uma festa de Natal da prefeitura de Santo Amaro do Maranhão.
O filme ainda conta com Caçula Rodrigues, que faz o Tonhão que, assim como Vitão Santiago, que faz Xambim, é maranhense, mas mora em São Paulo; Nádia D'Cássia, que já tinha feito alguns curtas no Maranhão, e chegou no teste no tom preciso, conquistando o papel de Vitória; algo parecido aconteceu com Michelle Cabral, que faz a Irineuza e Rosa Ewerton Jara, que faz a Jucélia, ambas experientes atrizes da cena local que se destacaram nos testes de elenco realizados em São Luís.
Um dos destaques do elenco é Tião Carvalho, músico maranhense de Cururupu. É o grande nome do Bumba Meu Boi do Morro do Querosene. Um dos responsáveis por levar o Boi do Maranhão para São Paulo. Tião Carvalho voltará à Berlim pela terceira vez, nas outras duas foi para se apresentar como músico - uma vez antes da queda do muro e outra depois - e agora volta para brilhar como ator no Festival de Cinema.
A música, aliás, tem um papel fundamental em ‘Betânia’, que conta com mais de 60 momentos musicais dentro do filme, entre toadas de Boi compostas e interpretadas por cantadores do povoado, Reggae Remixes, Incelenças e Tambor de Crioula, entre outros gêneros.
“O Maranhão tem uma riqueza cultural gigantesca! Saber que vamos botar gente do mundo inteiro pra sentir o pandeirão do Boi batendo lá no fundo do coração nos deixa realmente emocionados.”
‘Betânia’, reflete Botta, talvez seja um filme sobre esse sentimento atual que paira sobre o mundo. “A duna que desvia o rio que destrói casas em um povoado isolado é o prenúncio de uma tragédia climática que está batendo na porta de todo mundo.”
“O sal que matou o marido de Betânia é, de certa forma, a representação da má gestão da pandemia que matou tantos brasileiros. A revolta de Dona Betânia é a nossa revolta. ”
Mas esse, também explica o cineasta, não é um filme pessimista, “Assim como as flores que surgem nos Lençóis na época da seca, Betânia e sua família renascem.” E, pelo visto, o cinema brasileiro também.
Filmado durante um governo no qual o cinema foi tratado como inimigo, Betânia chegará aos cinemas em um novo contexto político. “Com a realização de filmes num período em que não havia nem mesmo um Ministério da Cultura, nós, realizadores brasileiros, resistimos a todo esse processo histórico no qual sofremos golpes e tentativas de golpe. E agora, com a volta das políticas públicas, podemos dizer em alto e bom som que o cinema nacional está mais vivo do que nunca.”
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