
Milagres e outras coisas de menino
Tanto em Fernando Sabino quanto em Jorge Amado, percebe-se que a boa ficção se faz com a matéria viva das memórias do que vivenciamos.
Vocês não sabem, e talvez nem acreditem, mas, quando criança, Fernando Sabino podia voar; ficar invisível; tirar seu sósia do espelho; libertar passarinhos; invadir a casa abandonada da vizinhança; se aventurar pela selva; enfurecer o vizinho; enfrentar o valentão da escola; e, é claro, sofrer a primeira paixão. Enfim, era capaz de milagres e outras coisas de menino.
Mas o Sabino-homem também tinha lá seus truques; conseguia revisitar e recriar seu passado a partir da imaginação do seu eu-criança. Sabino fazia o que queria porque era escritor.
Em O Menino no espelho (1982), a fronteira entre ficção e realidade – caso exista – é quebrada porque um escritor lembra que um dia foi menino, e ser criança é acreditar. Sabino acreditou na imaginação da criança que um dia foi, quis que eu e você acreditássemos também, e por isso escreveu essa autobiografia.
O curioso é que, ao experimentar lê-la, o eu-criança de qualquer adulto, desde que minimamente atravessado pelo desejo de transcendência, testemunha a favor da veracidade de cada fato narrado.
De modo semelhante, a autobiografia romanceada de Jorge Amado, O Menino grapiúna (1981) refaz o caminho de um dos maiores escritores brasileiros do século XX.
A obra cobre a infância do escritor baiano desde quando ainda bebê, sobrevivendo entre rastros de sangue e morte, até o início de sua adolescência, quando foge do seminário – onde teve contato, pela primeira vez, com a Literatura, o que, por sua vez, salvara sua alma enquanto ali dentro – em direção à liberdade tanto almejada.
Como em toda biografia, há o cruzamento de informações sobre vivências e como elas repercutem na formação de quem as viveu. Nesse caso, presencia-se a formação de um escritor, mais precisamente, de um escritor de ficção, e é profundamente enriquecedor saber como e de onde vinham as inspirações de Jorge Amado na composição de cada uma de suas memoráveis personagens, em especial os vagabundos, as putas, os coronéis, todos sujeitos tortos, ambivalentes, como o são as pessoas reais.
Se a ficção de Jorge Amado é viva, isso se deve à própria vida do autor que, para além de uma formação intelectual forjada por detrás dos livros, foi sujeito conhecedor da vida do jeito que ela é.
Tanto em Fernando Sabino quanto em Jorge Amado, percebe-se que a boa ficção se faz com a matéria viva das memórias do que vivenciamos, seja na nossa própria pele ou naquilo o que nossos sentidos conseguem captar do mundo à nossa volta.
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