Crítica

São Luís é a Ilha Jamaica

Musical conta história do reggae na capital maranhense.

Karla Freire, jornalista e pesquisadora do reggae maranhense

Atualizada em 19/05/2025 às 08h30
'Ilha Jamaica' mergulha nas vivências da juventude maranhense, que encontra na música não apenas refúgio, mas, também, um caminho de afirmação e esperança (Foto: Dankelvis Soeiro)
'Ilha Jamaica' mergulha nas vivências da juventude maranhense, que encontra na música não apenas refúgio, mas, também, um caminho de afirmação e esperança (Foto: Dankelvis Soeiro)

SÃO LUÍS - “Alô massa regueira. Te liga na pedra, no balanço do grave que bate no peito, que chega de mansinho no pic da onda e tomou de conta do gueto, do salão e do coração do Maranhão. Agora a ilha dança agarradinho ao som de Eric, Marley, Cliff e de uma galera que ralou noite e dia na Jamaica. E tem desassuntado que diz até hoje que reggae é coisa de bandido, de marginal. Mas quem tem raiz forte não se abala. Então se ajeita dj, cola na radiola que a viagem vai começar. O tempo do reggae tinha acabado de chegar, no Toque, no Pop, foi tomando conta do Espaço. E no comando, seu dj Big Lion. Então te ajeita, caboco, que tá começando o meu, o seu, o nosso Ilha Jamaica”, assim decreta o dj interpretado pelo cantor Albert Abrantes no musical Ilha Jamaica, depois que trabalhadores diversos sobem ao palco ao som de um vibrante Regueiros Guerreiros, hino da banda Tribo de Jah.

O musical começa assim pra pontuar quem fez o reggae ser o que é no Maranhão. O movimento germina e cresce nas periferias. Mas o reggae nasceu em outra ilha – foi na Jamaica, surgido do contexto afro-diaspórico, de movimentos musicais que foram se transformando até chegarem ao ritmo que ganharia o mundo. O musical Ilha Jamaica puxa esse fio, sem esquecer do percurso afro-caribenho-Maranhão amazônico.

Reggae no Maranhão tem forma particular de dançar (Foto: Dankelvis Soeiro)
Reggae no Maranhão tem forma particular de dançar (Foto: Dankelvis Soeiro)

O espetáculo une dança, teatro e, claro, muita pedra, pra exaltar que o reggae é, sobretudo, resistência. As perseguições da polícia, vividas pelos regueiros ali pelos anos 1980 na capital maranhense são retratadas com algum deboche, mas especialmente como lembrete dos preconceitos enfrentados pela população negra das periferias que ousou abraçar o reggae vindo da Jamaica (“ilha pobre e preta”, como reclamavam alguns intelectuais antigamente).

Zanto Holanda, Regiane Araújo e Lucas Ló cantam ao vivo no espetáculo (Foto: Dankelvis Soeiro)
Zanto Holanda, Regiane Araújo e Lucas Ló cantam ao vivo no espetáculo (Foto: Dankelvis Soeiro)

A identificação do maranhense vai se concretizando a cada desafio social e pessoal vivido pelos protagonistas: Martin  (Zanto Holanda), jovem negro que sonha em ser cantor de reggae e se vê no dilema de seguir o sonho ou sobreviver como a sociedade espera, e Rubi (Regiane Araújo), professora que luta pra deixar a escola comunitária aberta e desabrocha como compositora e cantora de reggae. É a história do casal que conduz o musical. Ele tem um pai trabalhador do porto (Vicente Melo), que tenta colocar os pés do filho no chão e descer a cabeça das nuvens; ela tem uma mãe solo que vive seus próprios dramas (Marlucie Silva). O toque de humor fica por conta de Caranguejo, personagem do cantor Lucas Ló, que costura a trama com tiradas cômicas e protagoniza o famoso “melô do caranguejo”.

O cantor Lucas Ló faz o personagem cômico Caranguejo, uma referência ao famoso melô (Foto: Dankelvis Soeiro)
O cantor Lucas Ló faz o personagem cômico Caranguejo, uma referência ao famoso melô (Foto: Dankelvis Soeiro)

Histórias maranhenses (que poderiam ser) reais dão profundidade ao enredo, embalado por versões em português de clássicos do reggae, feitas pelo dramaturgo Eduardo Medeiros, que também assina o texto bastante fluido, Thierry Castelo, idealizador e diretor do musical, Fernando Leite, que faz direção musical, e Lucas Ló. Se pensarmos no tanto que as radiolas maranhenses já fizeram versões de músicas estrangeiras (lembrem que por aqui tudo vira pedra – de Celine Dion a Kate Perry), Ilha Jamaica segue esse embalo e agora entrega letras em português de canções como Think twice, I shot the sheriff, No slave, My mind, entre outras pedras. As versões são muito boas, funcionam bem e são executadas ao vivo por uma banda afiadíssima  (e completa – com metais, piano e percussão) e um elenco talentoso. Destaque pra voz belíssima da cantora Regiane Araújo, que emociona em vários momentos.

Aliás, o elenco formado por maranhenses canta, atua e dança também. Nesse último quesito, tem ali dança contemporânea com movimentos afros e muitos passos de reggae coreografados pela  bailarina Isa Sousa. Os dançarinos não chegam a deslizar no palco como os regueiros que vemos nos salões, mas bailam, mesmo que timidamente, no ritmo cadenciado do nosso roots. Figurino, iluminação e cenário fazem o clima gostoso e familiar pra quem é daqui. O porto é um cenário importante, pois foi por lá que chegaram as primeiras bolachinhas de reggae vindas do Caribe. O paredão da radiola está ali, marcando presença onipresente como é no reggae maranhense e o espetáculo ensaia uma junção que não existe (infelizmente) no movimento na Ilha: dj, radiola e banda tocando juntos num clube, fazendo a festa da massa regueira. Recentemente, a dama do reggae, a cantora Célia Sampaio, inclusive, me disse em entrevista que ela nunca foi convidada pra tocar numa festa junto com uma grande radiola. Fica aqui a provocação aos nossos magnatas do reggae.

Musical retrata preconceito contra o reggae mostrando batida policial em clube (Foto: Dankelvis Soeiro)
Musical retrata preconceito contra o reggae mostrando batida policial em clube (Foto: Dankelvis Soeiro)
Elenco canta, dança e atua; destaque para Regiane Araújo, que interpreta Rubi (Foto: Dankelvis Soeiro)
Elenco canta, dança e atua; destaque para Regiane Araújo, que interpreta Rubi (Foto: Dankelvis Soeiro)

Saí do Teatro João do Vale com a sensação de que esse espetáculo só poderia surgir aqui. É a ilha do amor que tem essa eferverscência que abraça o reggae como seu, ressignifica e adota o ritmo e faz dele algo único. A cada música dançada, cantada e contada, vai nos lembrando por que somos a Jamaica brasileira. Vida longa e espero que o espetáculo estenda a turnê local e depois saia pelo país levando nossa cultura tão singular pra outros estados. Bravo! 

Musical teve todas as sessões esgotadas (Foto: Dankelvis Soeiro)
Musical teve todas as sessões esgotadas (Foto: Dankelvis Soeiro)

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