Entrevista

Mulheres sáficas escrevem juntas por representatividade

Gisele e Bruna Baldassari, autoras da comédia romântica "Uma pitada de sorte", falam sobre a importância de representar mulheres sáficas na literatura brasileira.

Evandro Júnior / Na Mira

Gisele e Bruna Baldassari
Gisele e Bruna Baldassari (Foto: Divulgação / Jefferson Costa)

No Brasil, estima-se que 2,9 milhões de indivíduos a partir de 18 anos se declaram lésbicas, gays ou bissexuais, segundo pesquisa de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas onde estão as histórias dessas pessoas na literatura, no cinema, na televisão? 

Embora as pautas queer agora sejam mais discutidas nos meios culturais, as escritoras Bruna e Gisele Baldassari sentiam que faltava representatividade sáfica no mercado literário, principalmente em histórias leves, repletas de comédia e romance.

Casadas desde 2018, a dupla encontrou na escrita uma forma de dar mais visibilidade às narrativas românticas que gostavam de assistir na infância e adolescência, mas nas quais nunca se viam representadas. 

O hobbie se transformou em profissão e hoje elas já têm seis livros publicados em conjunto, todos voltados para o público jovem interessado em ler enredos que unem o romance à diversão e são focados na comunidade LGBTQIAP+.

Último lançamento do casal, que assina sob o pseudônimo G. B. Baldassari, ‘Uma pitada de sorte’ narra a jornada de uma jovem uruguaia que tenta se tornar uma cozinheira da alta gastronomia em Buenos Aires enquanto lida com os sentimentos pela chefe. 

Em entrevista, as autoras comentam as inspirações por trás da obra e reforçam a importância de levantar a bandeira da diversidade não somente nos livros new adult, como também por meio de projetos sociais que incentivam o protagonismo sáfico no Brasil. Leia na íntegra:

“Uma pitada de sorte” é um romance ambientado em Buenos Aires e tem uma protagonista uruguaia. Por que vocês escolheram estes países e decidiram situar a narrativa na América Latina?

G.B. Baldassari: Buenos Aires é uma cidade incrível e, desde que começamos a escrever, tínhamos vontade de ambientar uma história nela. Achávamos que a atmosfera do lugar, cheio de livrarias charmosas, boa gastronomia e arquitetura ímpar daria um cenário maravilhoso para uma comédia romântica. Além do mais, as histórias nacionais tendem a escolher quase sempre a Europa ou os Estados Unidos quando a ideia é ambientar fora do Brasil. Achamos que a América Latina merecia representação.

A personagem principal do livro é Amélia, uma jovem que sonha em se firmar no mundo da alta gastronomia. Bru, como sua formação em gastronomia influenciou a escrita da obra?

G.B. Baldassari: No mundo real, a vida do chef de cozinha é difícil e cheia de desafios. Mas, na ficção e no imaginário popular, é uma profissão bem mais glamourizada. Tentamos unir esses dois lados, retratando o universo de um restaurante renomado versus a dificuldade de chegar até ali. É claro que conhecer os processos, as funções de cada chef, os utensílios, os ingredientes, os pratos clássicos, tudo isso foi de grande ajuda, mas a escolha por alocar a história numa cozinha de alta gastronomia teve mais a ver com a cidade, com a sua grande vocação gastronômica, do que com a formação em gastronomia.

A protagonista tenta se tornar bem-sucedida no trabalho, procura uma namorada, lida com a distância da família e conta com a ajuda de amigos para trazer leveza aos dias. Para vocês, como esta personagem representa os conflitos atuais da juventude?

G.B. Baldassari: Nossas histórias, em geral, falam sobre mulheres no início da vida adulta. Nosso interesse não está em tratar temas como autodescoberta ou saída do armário. Queremos falar sobre pessoas que já passaram dessa fase e agora lidam com os conflitos de sair de casa, entrar no mercado de trabalho e, no caso dessa história, se firmar num universo que historicamente sempre foi dominado pelos homens, que é a alta gastronomia. A personagem está numa cruzada para entender seu papel num mundo que muda todos os dias, assim como todas nós.

O livro conta com uma narrativa similar às comédias românticas dos anos 2000, mas com protagonismo sáfico. Qual a importância de publicar obras leves e românticas com personagens sáficas para a literatura brasileira?

G.B. Baldassari: Como mulheres lésbicas, nos deparamos todos os dias com dois universos, um que há muito tempo já normalizou nossas vivências e nos acolhe como iguais. E um outro que ainda resiste, que se apoia em conceitos religiosos e que não reconhece a nossa existência. Isso fica explícito quando vemos a quantidade de séries sáficas que são canceladas depois da primeira temporada todos os anos. Lutar contra isso é desgastante, mas é a nossa realidade, e a nossa forma de combater isso com leveza é contar as histórias que nós sempre amamos assistir na nossa infância e adolescência, mas onde nós nunca aparecíamos.

Vocês, inclusive, idealizaram o projeto “Sociedade da caixinha sáfica”, que apresenta um conto por mês aos assinantes. Podem falar um pouco desta ação e sua importância para a divulgação da literatura sáfica no país?

G.B. Baldassari: Esse é o primeiro projeto de assinatura de contos exclusivamente sáfico já feito. Temos muito orgulho dele e de como foi amplamente abraçado por essa comunidade de leitoras que sempre foi tão carente de representação. Chegamos a ter mais de 600 assinantes simultâneos e já passaram mais de 1.200 pessoas pelo clube. É uma prova de que as pessoas estão dispostas a apoiar a literatura sáfica e aprovam esse tipo de iniciativa. Em “Uma pitada de sorte”, temos duas mulheres lutando por espaço na alta gastronomia. É um reflexo da vida aqui fora, onde nós lutamos diariamente para ocupar espaços onde nunca estivemos, como as livrarias.

 Vocês namoram há mais de uma década, mas começaram a escrever juntas somente depois que se casaram em 2018. Podem falar como foi o início deste processo de escrita colaborativa? Vocês acham que a literatura aproximou mais vocês?

G.B. Baldassari: Começamos como um hobby, algo que gostávamos de fazer juntas nas horas vagas e acabamos tornando isso nossa profissão. Atualmente somos escritoras, já conseguimos viver de escrita, e isso é muito recompensador porque não é algo fácil de ser alcançado. Então, sob o ponto de vista profissional, a escrita nos aproximou mais. Como casal, nos damos muito bem trabalhando juntas, achamos que a força das nossas histórias reside justamente na união das nossas escritas.

“Uma pitada de sorte” foi o primeiro livro publicado por uma editora profissional, mas vocês já possuem outras obras no mercado. E agora, quais os planos para o futuro?

G.B. Baldassari: Sim, começamos na autopublicação em 2021 e temos outras quatro histórias na plataforma da Amazon, todas com mais de mil avaliações cada. “De Repente, Namoradas” tem quase três mil. Temos um romance previsto para abril que também sairá pela Amazon, resultado de uma das metas do nosso projeto de assinatura que elegeu um dos contos para virar um livro. E para o segundo semestre teremos mais um lançamento pela editora, que, assim como “Uma pitada de sorte”, estará nas livrarias.

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