Revitalização

­Cidades substituídas

Experiências exitosas de retrofit mudam paisagem de centros históricos e atraem atenção de turistas e curiosos

Félix Alberto Lima e Salgado Maranhão / Especial para O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15

Algumas cidades são extraordinárias pelo que guardam nas entranhas, nas quebradas, nos quarteirões antigos, nos pontos mais boêmios. O misterioso sumo da beleza das cidades está no centro delas, esse cep quase universal, magnético, que aglomera, que reúne coisas e gente. Por mais que haja vida pulsando nos arredores, é no centro que está a alma das cidades.

Ainda que a brisa bafeje as varandas dos condomínios litorâneos e toda a sua modernidade – e que, cada vez mais, movimentos migratórios empurrem o homem para a periferia – no centro das cidades moram a poesia, as raízes, a ancestralidade de um povo. Reside lá a importância do tecido histórico de qualquer comunidade. É por onde tudo começa.

Mesmo nas cidades grandes, onde há mais de um centro, a pedra fundamental das povoações está nos chamados centros históricos, os conjuntos urbanos inaugurais, alguns deles seculares, que vêm sendo devorados ao longo do tempo pela evolução industrial. Automóveis tomaram ruas que foram planejadas para o uso de bondes, o asfalto encobriu o chão que um dia foi de paralelepípedo.

Alguns desses centros históricos foram perdendo vida no compasso do tempo. Parcialmente abandonados, sem investimentos em tecnologia e acessibilidade, tombaram, viraram ruínas. As repartições públicas e as grandes empresas mudaram dos centros para endereços modernos, com melhor estrutura.

No Brasil, prédios de imenso valor histórico foram deliberadamente esquecidos por proprietários insensíveis. Alguns donos de imóveis tombados pela Unesco, em São Luís, no Maranhão, chegaram ao ponto de deixar que casarões de traços coloniais desabassem, pela ação do tempo e, principalmente, das chuvas, para transformá-los em estacionamento de veículos.

Mas quando os centros históricos pareciam sucumbir, esvaecendo na paisagem das cidades, eis que o mundo começa a se reinventar no retrofit. Não é uma novidade. Na Europa da última década, algumas cidades foram tomadas por projetos de restauração de imóveis históricos em ruína.

Lisboa é o caso mais emblemático de experiências bem-sucedidas de retrofit. Os sobrados, com seus traços arquitetônicos antigos e extraordinariamente belos, ganharam vida. Além de delicada recuperação das fachadas, internamente os prédios foram repaginados com todo o aparato da tecnologia.

Com investimentos em itens hoje essenciais que a engenharia e a arquitetura do passado não previram, como sustentabilidade, climatização, acessibilidade e projetos elétricos e hidráulicos mais seguros, dá-se a convivência harmoniosa entre o antigo e o novo.

Numa parceria entre governo e iniciativa privada, casarões antes abandonados dão lugar a instituições bancárias, restaurantes, cafés, escritórios, lojas de grifes e apartamentos para moradias, muitos deles a serviço do turista via aplicativos como Airbnb. Prédios em ruína, após obras do retrofit, transformam-se em importantes polos de atividade econômica.

E não é só Lisboa. Há Porto, Évora e outras cidades europeias que se reencontraram no retrofit. Mas Lisboa conseguiu reerguer-se ante a crise econômica global iniciada em 2008, graças aos grandes investimentos no seu centro histórico. O turismo pulsa na capital portuguesa, hoje talvez a cidade mais atraente para os visitantes europeus, pelo clima, pela gente, pela conservação, pela segurança. Pela reinvenção.

No Brasil, o retrofit ainda é quase uma miragem. Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís são exemplos de capitais cujo modelo arquitetônico dos centros tem forte influência da colonização portuguesa. Com o tempo, perderam muito de suas características, pedaços de sua história.

São Luís é uma rara joia arquitetônica brasileira tombada como Patrimônio da Humanidade em 1997. Daquilo que se observa nas ruas, quase nada ainda aprendemos com o exemplo dos europeus que, redescobrindo a essência de suas velhas cidades, transformaram-nas (das menores às maiores) em polos de crescente interesse do turismo internacional.

Em recente visita à capital maranhense, o poeta angolano Lopito Feijó encantou o mundo lusófono com belas referências e postagens sobre São Luís. Das fotos que divulgou, muitos dos seguidores do poeta nas redes sociais acreditaram tratar-se de Lisboa ou de outra cidade portuguesa – vale lembrar que, até o século XIX, São Luís era chamada de ‘Pequena Lisboa’ pelos viajantes que nela aportavam.

Acreditamos ainda caminhar para o futuro. Mas, ao invés de “modernos”, estamos nos tornando kitsch. Entregamos ao descaso nossa melhor referência, o significado mais caro à cultura material. E, como diz o ditado, aonde não tem gente os bichos tomam conta.

Claro que as soluções não são improváveis. No Brasil há pelo menos quatro exemplos bem-sucedidos de zelo arquitetônico, de restauração exitosa: Parati, Ouro Preto, Tiradentes e Olinda. Prova viva de que nem tudo está perdido! Por meio dessas cidades, podemos olhar com critério e urgência outros casos que exigem preocupação no País. A erosão do tempo não nos dá outra opção. Não temos para onde levar os escombros do tesouro que recusamos.

Estado e município, sozinhos, não dispõem de meios para arcar com a recuperação desse acervo monumental. Mas têm a obrigação de promover políticas públicas de parceria com entes privados para salvar parte significativa da nossa história. E é o que começamos a enxergar agora pelas ruas do centro de São Luís, com algumas dezenas de casarões abraçados por tapumes coloridos que anunciam uma nova aurora.

Não se trata aqui de mero culto ao antigo, mas de respeito à memória dos nossos antepassados, à cultura em pedra e cal, de reverência a essa anima mundi ancestral.

ue os ventos alísios do retrofit cheguem mais rapidamente a nossas cidades históricas. E que as famílias voltem a fazer do centro da cidade esse endereço fértil de utilidade pública, gentileza e afeto. Antes que seja tarde.

São Luís e a primazia do retrofit

São Luís foi palco de uma das primeiras obras de retrofit no Brasil, antes mesmo das intervenções de restauro arquitetônico financiadas pelo governo federal e incluídas no Projeto Reviver, no bairro da Praia Grande, em fins da década de 1980. A recuperação do Solar São Luís – ou Palácio de Porcelana –, na esquina das ruas do Egito e Nazareth e Odylo, no centro histórico da capital maranhense, é um divisor de águas em iniciativas arquitetônicas que visam resguardar a harmonia entre o antigo e o novo.

O Solar São Luís, construído em 1866, fora projetado à semelhança dos sobradões existentes em Lisboa, com requintes de detalhes que exigiam a importação de matéria-prima portuguesa e mão de obra especializada. Planejado para ser a maior fachada de azulejo colonial da América Latina, o Solar São Luís abrigou, por longos anos, lojas, restaurantes, oficinas, escritórios de advocacia, hotel e livraria.

Por suas características arquitetônicas peculiares e fachada colonial exuberante, o prédio virou referência e ponto de encontro mais tradicional de São Luís durante décadas. Pelo Café Serra, a Livraria Moderna e o Hotel Serra Negra circulavam homens de negócios, intelectuais, estudantes e clientes em geral.

No dia 3 de agosto de 1969, um grande incêndio – iniciado num dos cômodos do Hotel Serra Negra, no terceiro pavimento – destruiu toda a parte interna do Solar São Luís, imóvel à época de propriedade da família Moreira Lima. Restaram apenas os paredões externos, a fachada de azulejos, a silhueta dos arcos, soleiras e sacadas em pedras.

Em 1975, a Caixa Econômica Federal adquiriu o prédio em ruínas e iniciou um demorado processo de restauração, com projeto assinado pelos arquitetos cariocas Dora e Pedro Alcântara. Ambos trabalharam, entre os fins da década de 1950 até os anos 1980, em obras como o Edifício João Goulart, restaurações do Palácio Cristo Rei e da Igreja de São Matias e projeto de expansão turística em Alcântara.

O prédio só foi reinaugurado pela Caixa em 1982. A reforma contemplou intervenções na estrutura interna, que ganhou nova edificação, de padrão arquitetônico moderno, e novos projetos hidráulico e elétrico. A fachada original foi totalmente preservada, com a recuperação de algumas extensões de azulejaria de estilo colonial português.

O edifício restaurado passou a contar com subsolo, pavimento térreo e dois pavimentos superiores, além de sótão no desvão do telhado. As esquadrias das fachadas foram recompostas de modo similar ao original, em madeira com venezianas e bandeira de vidro.

Durante os anos 1980 e 1990, o Solar São Luís abrigou a superintendência da Caixa no Maranhão e serviu de galeria para importantes exposições de artes plásticas em seu Conjunto Cultural.

Nos últimos 15 anos, porém, a superintendência da Caixa mudou de endereço e o Solar São Luís começou a ser esvaziado, apresentando sinais de falta de conservação e manutenção, como o descascamento das paredes internas, presença de manchas de umidade, sujeira aparente e comprometimento da estrutura. A extensa fachada de azulejaria colonial é o elemento do conjunto arquitetônico que mais sofre com a falta de cuidados.

O que se constata, diante do abandono em que se encontra o velho casarão – cujas paredes internas esboçam em letra caixa o poema “O sobrado é belo/ Mas sua beleza/ Sem vidas humanas/ Só lhe dá tristeza”, uma espécie de clamor de Odylo Costa, filho –, é que parte importante da história de São Luís, apesar de tombada, está tombando com o tempo. (Félix Alberto Lima)

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