Comentário

O rio, os peixes e a pororoca

Jorge Campos

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16
Capa do livro de José Fernandes, elogiado por Jorge Campos
Capa do livro de José Fernandes, elogiado por Jorge Campos (o Rio )

São Luís - Merece crédito a frase do escritor Marcelo Fróes ao dizer que “os livros podem ser como vinho velho e filmes antigos: ficam melhores com o passar do tempo; se a narrativa não fica desatualizada, um bom livro pode ser eterno, como são os códigos religiosos e os clássicos da literatura”.

Lembrei-me dessa expressão ao reler, agora, um livro editado há bastante tempo, aqui mesmo em São Luís, precisamente em 2004, intitulado O rio, pelo seu conteúdo realístico e atualizado, e por ainda preencher uma lacuna contextual da maior importância para aqueles que, sincera e espontaneamente filiados à defesa da natureza, propugnam pela badalada e pouco exercitada cidadania ambiental, com relação aos grandes cursos de água doce do planeta.

É ao rio Mearim que o livro se refere, curso de água potável genuinamente maranhense, que banha, com seus afluentes - Pindaré, Grajaú, Flores e Corda -, mais de 40 municípios, com igarapés, córregos e lagos imensos, repletos de cachoeiras, pororocas, peixes e lendas (outrora, o rio inundava casas e ruas urbanas e suburbanas das cidades, enchentes que perduraram até a construção, pelo Governo Federal, de uma grandiosa barragem, ora prestes a ruir, por falta de zelo e conservação).

O livro O rio, aqui reportado, da autoria do advogado e pesquisador maranhense José Fernandes, ativo sócio honorário do nosso Instituto Histórico e Geográfico, encanta logo de início pelo seu linguajar poético, ao evocar o rio de sua infância, responsável pela sua progênie (você saberá o motivo), cuja “simples visão, ainda hoje, lhe revigora as forças e lhe abastece o espírito, como se, nos seus murmúrios, pressentisse mensagens que envolvem os seus mistérios”.

Fala-nos o livro, em tom de conversa amena, sobre a navegação do rio por barcos à vela e à vapor, lanchas, batelões e igarités, que conduziram, por séculos, os produtos agrícolas que ajudaram a forjar a riqueza do Maranhão em outros tempos, formadora de uma abastada categoria de negociantes e embarcadiços, coadjuvante de um ciclo de prosperidade, em meio a belas e rústicas paisagens de campos e matas virgens.

Sabe-se que a ideia da obra surgiu de pequenas anotações que o autor fez em um passeio, que se transformou numa expedição de estudo, no extenso percurso do Mearim, com outros companheiros de jornada – uma narrativa aventureira contada com toda a crueza de sua realidade, vivida em região pouco visitada; mostra a extrema pobreza dos seus habitantes, carentes moradores de rústicas cabanas de palha e chão batido, desprovidas dos mais comezinhos preceitos de higiene e saneamento, mas, na maioria, dotados de cândida conformação com o próprio destino.

Os excursionistas transitaram pelos entornos ribeirinhos, munidos de extensos questionários, transformados em entrevistas in locum, e, com elas, obtiveram conhecimentos reais das condições sociais, econômicas e etiológicas dos moradores da região – ações devidamente documentadas fotograficamente e incluídas no compêndio referido.

Interessantes e instrutivas são as observações históricas e geográficas, feitas pelo autor, referentes às viagens que fizera ao Lago-Aço, às cidades sediadas nas margens, à grande Barragem do rio Flores, à aldeia indígena Cachoeira, e, mais relevantes, às recônditas e antes desconhecidas nascentes do extenso rio, cuja leitura atual faz-nos ver, pelo que sabemos por fontes confiáveis, que a ambiência do Mearim, hoje, encontra-se em estado ainda mais deplorável do que quando o livro fora lançado (vide págs. 137/141).

Já naquela época, o autor recomendava: “a área em derredor das cabeceiras dos primeiros fluxos de água deve ser declarada reserva de proteção ambiental... A salvação do rio deve começar logo com a construção de cercas, devidamente vigiadas, para a proteção da nascente, antes que seja tarde”.

A obra em referência nos mostra uma visão panorâmica, antiga e atual, não somente do Mearim, mas dos demais rios do Maranhão, do Brasil e muito além, com raras exceções - amostragens vivas, em tese, das sujeiras aquáticas do mundo. Seus capítulos concluem evidenciando que “a natureza sábia evoluiu milhares de anos para moldá-la em proveito do ser humano, e esse mesmo ser, seu beneficiário, precisou de apenas de alguns anos par levá-lo a um processo de lenta decrepitude”.

No final de O rio, José Fernandes, além de expor várias providências a serem tomadas por quem de direito, a fim de melhorar as condições de vida da população mearimense, sugere, ainda, que os municípios da bacia realizem seminários, isolados ou em grupos, onde os problemas detectados sejam postos em questão, discutidos e transformados em medidas simples e eficazes para a revitalização daquele ainda saudável curso líquido, sem os formalismos e os dispêndios de ações públicas que raramente se concretizam.

Não temos notícias de que os estudos e sugestões contidos na aludida brochura tenham ou não sido aproveitados pelos comitês de defesas dos rios Mearim e Itapecuru, criados pelo Assembleia Legislativa do Estado, cuja atuação prática ainda desconhecemos.

Inobstante, o livro, ora sumariamente comentado, é um tributo à água, um convite à vida e um libelo contra a devastação ambiental. Mostra que a simples prática de noções ecológicas minimizam os riscos que cometemos com a poluição do ar e da água, com a diminuição das árvores, dos peixes e das aves.

O livro, enfim, retrata, em parte, uma cruel fase da nossa vida, na hora presente, fazendo com que o autor alcance a indignação pela irresponsabilidade da ação do homem – único animal a cuspir naquilo que bebe, como na visão de João Cabral: Severino, retirante, o mar da nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga e devasta a terra inteira.

É salutar você ler ou reler esse livro – O rio. É a voz do cidadão consciente, que constrói uma obra útil, mas difícil, por querer obter transformações radicais da realidade imperfeita. Você verá.

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* Economista e Mestre em Literatura Brasileira.

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