Especial / O Estado

Personagens que devem tornar o bumba meu boi patrimônio

Cidadãos anônimos, mas que gozam de representatividade em determinado nicho comunitário são, até hoje, reverenciados por suas contribuições e importância para a disseminação da festa pelos arraiais do estado

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22

Tratar do bumba-boi é citar nomes históricos e que são lembrados por quem acompanha a tradição desde o início do século XX. Referências como João de Chica e Calça Curta (grandes nomes da formação do Boi da Maioba, uma das brincadeiras históricas do Maranhão), além de Chiador, Dá na Vó, Humberto de Maracanã, Donato, Chagas, Marciano Passos e tantas outras foram fundamentais para a popularização de uma festa que, até os anos 1940 e 1950, era restrita apenas a determinadas comunidades.

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Mas para entender a complexidade do bumba meu boi, é imprescindível também citar nomes que são aparentemente anônimos para o grande público, no entanto, gozam de respeito e representatividade entre os amantes dos grupos os quais representam.

Conhecer o mais antigo tocador de pandeiro – o “Seu Maior” - ou ainda se debruçar na biografia dos antigos dirigentes, como Domingos Baixinho e Seu Gonçalo, ambos do Boi de Ribamar, é repercutir a história de personagens menos conhecidos, mas tão importantes quanto para a disseminação da festa pelos arraiais do estado do Maranhão.

A cada história, a cada lembrança e a certeza de que o bumba meu boi é feito, em sua maioria, por uma gente simples e que ama o que faz em prol da cultura.

O repinique famoso de “Seu Maior”
Os passos lentos da velhice, ao se aproximar para a conversa com O Estado, evidenciam problemas de saúde. Mesmo assim, nem as limitações foram capazes de superar o amor e a saudade das lembranças dos tempos vividos no bumba meu boi. Seu Gonçalves Sebastião do Nascimento, de 84 anos, é um dos tocadores de pandeiro mais famosos, e vivos, da cultura popular local.

O começo da trajetória foi aos 15 anos de idade, em um antigo boi, na Maioba. A apresentação, à noite, foi iluminada por candeeiros e contou com a ousadia do então jovem. “Eu me ofereci, lá na apresentação, para tocar pandeiro. Já tinha uma noção de percussão, mas nunca tinha participado assim de brincadeira. Quando comecei a tocar, todo mundo gostou”, disse.

“Seu Maior” é assim chamado por se apresentar com um dos maiores pandeiros do circuito junino na Grande Ilha. “O apelido pegou por causa do pandeiro, e assim ficou”, disse. Atualmente, pelos problemas de saúde, o antigo instrumento ficou de lado, mas o ritmo pelas mãos ainda é o mesmo.

O percussionista, que integra o Boi Tremor da Campina, existente desde 2001 em São José de Ribamar – é mentor do repinique, sequência de batidas e mudanças de ritmo no pandeiro, com base no maracá que somente “Seu Maior” é capaz de executar.

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Mas o grande orgulho de “Seu Maior” é ter participado de apresentações por amor ao bumba meu boi. “Eu tenho um grande orgulho porque, onde eu chego, eles se admiram. Estava no João Paulo, tinha uma mesa e me chamaram para tomar uma cerveja. Disse que não bebia e me perguntaram como é que tem um brincante de bumba meu boi que não bebe. As pessoas se lembrarem da gente, não têm preço”, disse.

Brincante há mais de 60 anos
Desde 1948, as programações de bumba meu boi pela cidade contam com a presença de seu Erlito Menezes. Foi a partir de uma tia e da intervenção de seu Marciano Passos, funcionário da antiga fábrica Cânhamo e pescador, que seu Erlito enveredou para a cultura.

Seu Erlito começou como brincante e logo se tornou um dos diretores. Foi no Boi da Madre Deus (considerada a sua “faculdade na cultura”) que ele conheceu nomes como Ornílio Diniz e José Evaristo de Carvalho (o “Zé Toinho”).

Foram eles que cuidaram da mudança “temporária” do Boi da Madre Deus para São José dos Índios, em Ribamar, a partir de 1953. Isso ocorreu, segundo ele, por perseguição da polícia. “Ficamos lá por dez anos e ainda assim tínhamos medo de nos apresentar”, disse.
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Anos mais tarde, o Boi da Madre Deus volta ao seu reduto original. Atualmente, seu Erlito – caboclo de pena que é – ainda tem pique para se apresentar com o Boi Tremor. “Eu amo o bumba meu boi e saber que ele pode se tornar patrimônio da humanidade pra mim é a glória. É o prêmio por tudo o que fizemos”, disse.

O cantador Nélio Silva
Cantador de toadas desde os 5 anos de idade, pelas ruas famosas do antigo bairro Caratatiua, em São Luís, seu Nélio Silva – atualmente no Boi da Fé em Deus – começou a cantar pelo Boi de Cofo da infância e, após um hiato, voltou para a função tão amada em 1997, já adulto e cheio de ideias para canções.

Seu Nélio é famoso pela impressionante capacidade de improviso nas letras e voz marcante. Além do Boi de Cofo, ele se apresentou nos bois da Ivar Saldanha, Unidos Venceremos, do Itapera e da Fé em Deus.

O amor à cantoria nasceu a partir da admiração a João de Chica e Calça Curta. “Meu pai me levava lá na Maioba para ir escutar esses caras. Depois, a gente passava a noite lá mesmo, dormindo em cima de um papelão e debaixo de uma árvore. Isso fez parte da minha infância inteira e nunca me esqueci”, disse.

SAIBA MAIS

Terezinha Jansen
O Boi da Fé em Deus é considerado um dos mais antigos na cultura maranhense. Suas origens remontam a dona Terezinha Jansen, descendente direta de Ana Jansen, importante personagem da história do Maranhão. “Ser dona de um Boi é como ser dona de casa. Você tem que cuidar de tudo. Cuidar para que não faltem material, instrumento, comida, altar sempre enfeitado e tudo o mais”, disse dona Terezinha em entrevista publicada pelo site artedobrasil.com.br. A manifestação é de sotaque de zabumba e foi fundada em 1930, por Laurentino, que nasceu no bairro Fé em Deus. Dona Terezinha torna-se, após colaboração com o grupo, madrinha do Boi Fé em Deus. A promoção se deu, segundo a própria, a convite da família de Laurentino. O pedido, de acordo com dona Terezinha, foi feito à sua mãe.

Personagens
A multiplicidade das personagens também é uma característica marcante dos grupos do bumba-boi. Em torno da figura central, está o boi (como peça central) e animado pelo miolo, também denominado de tripa, alma ou fato. Além dele, dependendo do sotaque, estão os vaqueiros de cordão, vaqueiros campeadores, rajados, marujados, rapazes, caboclos de pena, cazumbas, toureiros, tapuios, tapuias, panduchas e tantos outros personagens.

[e-s001]Passo a passo para se tornar patrimônio

O processo oficial que confirma a manifestação como patrimônio cultural da humanidade é considerado complexo. Especificamente do bumba meu boi, os passos até chegar a possível homologação do título duraram sete anos. Inicialmente, a comunidade encaminhou para o Iphan a proposta de inclusão na lista representativa da Unesco – atendendo, neste caso, aos requisitos de elegibilidade do Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade.

Em seguida, a proposta de candidatura – neste caso precedida de avaliação do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan – seguiu para parecer da Câmara do Patrimônio Imaterial do órgão e do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Por fim, é remetido para a Unesco que, com base no material enviado e análises in loco, dá o veredicto. Apenas cinco manifestações culturais ou peças patrimoniais observadas no Brasil são integrantes da lista da Unesco: a Arte Kusiwa (sistema de representação gráfica própria dos povos indígenas Wajãpi, do Amapá), o samba de Roda do Recôncavo Baiano (que recebeu a chancela em 2005), o frevo (expressão artística do carnaval de Recife), a Roda de Capoeira e o Círio de Nazaré.

Grandes chances!
As direções nacional e regional do Iphan admitiram que são boas as chances do bumba-boi ser confirmado como patrimônio imaterial da humanidade. “Não somente pela fundamentação técnica, mas principalmente pela riqueza de sua manifestação e envolvimento e importância para a comunidade, o bumba-boi é uma das tradições culturais mais complexas já existentes e suas chances de contemplação com a honraria da Unesco são muito grandes”, disse a O Estado o diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan no país, Hermano Queiroz.

O dirigente estará a partir da próxima segunda-feira (2 de dezembro) na Colômbia, onde acontecerá a 14ª reunião do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial em Bogotá (COL), que analisará a proposta de inclusão do bumba boi como patrimônio. “Por sua complexidade e sincretismo, além da representação dos elementos afros e conjunto de ritmos, cores e diversos aspectos estéticos, o bumba boi tem tudo para se tornar patrimônio de todos”, disse Maurício Itapary, superintendente do Iphan no Maranhão.

Relembre
No dia 3 de junho deste ano, brincantes do bumba-boi estiveram na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), para participar da sessão solene em homenagem ao dia nacional da manifestação, comemorado no dia 30 do mesmo mês. Além de ter sido feita menção ao bumba-boi como complexo cultural e registrado como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os parlamentares encamparam o projeto de inclusão da manifestação como patrimônio de todos no mundo.

FALA, BRINCANTE!

O que representa o bumba boi na sua vida?

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“Para mim, é tudo. Fui brincante a minha vida inteira. Quando me lembro das recordações de vida, todas elas estão ligadas a alguma apresentação no Boi de Ribamar, da Maioba e tantas outras manifestações do estado”
“Seu Maior”, tocador de pandeiro mais antigo e vivo da Ilha

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“Eu amo o bumba-boi e saber que ele pode se tornar patrimônio da humanidade pra mim é a glória. É o prêmio por tudo o que fizemos”
Erlito Menezes, caboclo de pena do Tremor da Campina

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“Eu até me emociono ao falar. Quando tinha seis anos de idade, antes mesmo de bater na bola de futebol, batia era uma boa matraca. Daí em diante, não parei mais. Pra mim, bumba-boi é tudo”
Wesley Santos, o “Erlinho do Tremor”

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“Meu pai me levava lá na Maioba para ir escutar antigos cantadores. Nunca me esqueci e daí nasceu minha paixão. Falar de bumba-boi é falar de mim mesmo, por inteiro”
Nélio Silva, cantador do Boi da Fé em Deus

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