Nauro: oitenta e quatro anos de vida
Hoje, 2 de agosto, Nauro Machado completa 84 anos de nascimento. Registramos a data republicando incisivo artigo do jornalista e poeta maranhense Cunha Santos Filho, publicado neste jornal em 31 de dezembro de 1991, onde Cunha Santos destaca que a poesia
São Luís - “É uma poesia sem peias, sem meio termo, cheirando a suicídio o que, afinal, é a própria gênese de um povo que enfrenta fome, desilusão política, fúria genital mal resolvida, perturbações, pesadelos vivos, sentimentos lassos que escorrem da poesia que, assim tão virulenta, desnuda a frágil vida abissal do ser humano e vai além, coloca-nos reais, rebotalhos de uma sociedade em que a minoria tem uma perspectiva de vida assegurada, mas o todo pasta, como todos os búfalos, reses e bois amalgamados nos sonetos, vítima de “políticos”, “estadistas” (o grifo é nosso) que o poe-ta, sabidamente adverso a conquistas burocráticas, prefere execrar como foliões de um carnaval onde o prêmio de folias e estripolias são vidas humanas, vidas que se extinguem entre favelas, palafitas ou, mesmo, no ambiente senil da classe média...”
Sinto-me ousado e imprudente ao escrever sobre a poesia de Nauro Machado. Isto porque o considero o principal poeta vivo deste país, quiçá desta banda suja e trôpega da América. E há algum tempo. Com o soneto acima (do seu livro A rosa blindada), ensejo provocação: quem quer que tenha inventado essa estória de que há uma certa ausência de apelo social e vanguardismo dos ideais que nos últimos 30 anos alimentaram distintas gerações, na poética nauriana, escorregou para dois fatos, ambos insólitos: ou não o leu e concatenou uma vindita alimentada por inveja e perversão ou não ouviu o apito agoniado e estrepitoso de uma alma geriatricamente hostil ao mundo em que passeia: “ser de raça alheia ao chão da rua” “e de um suor contrário ao deste povo.” Basta ler, nem é preciso explicar. Basta absorver, não há que alcançar-se necessariamente.
Na minha mesa A rosa blindada, um livro de sonetos capaz de tirar o sono a qualquer um cuja sensibilidade tenha ultrapassado os limites do vinho abeberado nas charnecas e a sppy-descagem mal gestada dos solilóquios estampados em outras vinhas literárias. A poesia de Nauro Machado é algo novo, intransferível, espasmódica no gen que a determina. Não se trata de recriar o belo apenas, mas descobrir beleza no pútrido, no esgoto, nos ossos temporais dos cadáveres da cidade.
É como se ocorresse uma inesperada batalha entre os glóbulos brancos e vermelhos no corpo de quem o lê. Não se trata de simples estética. É mais que isso. É conviver com as fau-nas do inferno. É rebuscar o mais recôndito do homem e triturá-lo tematicamente, sintetizando os gritos. É a mais perene e constante sin-taxe da loucura de que tenho ouvido falar. Como sonhou Baudelaire, alguma coisa que escangota Deus como dito no Soneto 44 de A ro-sa blindada : “Cavalo de égua farto, o corpo tomba / no sexo entrando adentro como tromba / em um caixão onde Deus se dobra e dana.”
As rosas do gênio blindado1
Cunha Santos Filho (Poeta e Jornalista)
“Comprei um emprego para ouvir-me à morte,
trajar-me bem e mais dinheiro ter,
sem que a miséria alheia pouco importe
à mendicância própria a estar-me a ver.
Na prostituição vendida ao norte,
na prostituição ao sul, a me ater,
comprei um emprego para abrir-me à sorte
subtraída a infame, inócuo ser:
- fazer-me rico, lírico doente,
comprar um carro para ir ver o poente
e, com o carro, passear-me novo.
E perfumado, como quem não sua,
ser de raça alheia ao chão da rua
e de um suor contrário ao deste povo.”
(Nauro Machado)
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