Ancine

Os rumos do cinema no Brasil

Em meio a rumores de extinção da Agência Nacional de Cinema (Ancine), cineastas maranhenses reagem com reflexões sobre o audiovisual

Atualizada em 11/10/2022 às 12h24
Cena do filme Bacurau, premiado no último Festival de Cannes
Cena do filme Bacurau, premiado no último Festival de Cannes (Bacurau)

São Luís- A produção artística do Brasil novamente no centro da polêmica do governo do presidente da República, Jair Bolsonaro. Na última quinta-feira, 18, ele anunciou a transferência do Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil e fez diversas críticas à Agência Nacional de Cinema (Ancine), cuja sede, ele também estuda transferir do Rio de Janeiro para Brasília.

Segundo o presidente, a Ancine, agência reguladora cujas atribuições são fomentar, regulamentar e fiscalizar o mercado do cinema e o audiovisual no Brasil, não pode financiar obras “com ativismo”. Então sugeriu que o conteúdo dos filmes com fomento da agência seja fiscalizado. Como a sugestão de filtros repercutiu mal, o presidente voltou a falar sobre o assunto na sexta-feira, quando participava de uma solenidade sobre o Dia Nacional do Futebol. Segundo ele, caso não seja possível colocar filtros, a agência será extinta. “Vai ter um filtro sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos”, afirmou o presidente.

Polêmica
As declarações do presidente provocaram uma onda de reações contrárias de cineastas em todo o Brasil. Atores, produtores e cineastas mostraram preocupação com as declarações, interpretadas com a possibilidade de imprimir censura às produções locais. No Maranhão, cineastas também expressaram opiniões acerca dos rumos do cinema brasileiro com a possível extinção da Ancine. Premiado com seis Kikitos no Festival de Gramado (RS) pelo filme “Acalanto”, em 2013, e diretor de outras obras com diversas premiações, o cineasta Arturo Saboia, por exemplo, vê com preocupação as declarações.

“É no mínimo curioso uma notícia como essa num ano em que o Brasil saiu de Cannes com dois filmes premiados (‘Bacurau’, de Kléber Mendonça Filho, e ‘A Vida Invisível de Eurídice Gusmão’, de Karim Ainouz). Sem dúvida, é um retrocesso uma medida dessa num período em que nunca o cinema brasileiro esteve tão produtivo e diversificado desde o fim da era Collor. Com tanta coisa indo de mal a pior em vários setores no Brasil, o presidente prefere mexer com o que está indo bem, gera emprego e renda e é uma vitrine do país para o mundo”, analisa.

A cineasta Rose Panet, diretora do filme “Manuel Bernardino: o Lenin da Matta” também se mostra preocupada. “. “É um desmonte da cultura e das instituições que fazem pensar. Além do que, acredito também que tenha interesses de desvios financeiros, pois o Cinema é uma das cadeias mais dinâmicas e produtivas. É uma grande indústria. A Ancine foi criada em 2001 e o Fundo Setorial Audiovisual (FSA) em 2006, ambos nos governos do PT. É terrível, porque o audiovisual estava se democratizando com políticas de inclusão. O meu filme, ‘Manuel Bernardino: o Lenin da Matta’, só foi possível por conta do edital do FSA. Agora, ele quer controlar tudo, até o que será produzido. Não há dúvidas: estamos em uma ditadura travestida, talvez ainda mais dura”, enfatiza a cineasta.

Para Panet, a interferência da Ancine sobre o conteúdo pode interferir diretamente na produção de filmes. “O cinema produzido num país é o reflexo das condições desse país. Só que agora para conseguir fomento, teremos que produzir o que passar pelo ‘funil’ da censura. Os mais recentes filmes estavam mostrando e denunciando o abismo entre as classes sociais, a corrupção. O que vamos mostrar agora? E ainda acho que teremos filmes que serão proibidos, literalmente queimados no Brasil. Filmes como ‘O Processo’, o ‘Democracia em vertigem’, ‘Aquarius’, filmes sobre a ditadura militar no Brasil, ou seja, filmes que revelavam uma microteoria da política brasileira. Agora, como vamos levar a sério um país como esse? Com os personagens políticos que estão se apresentando? Com o desmonte do pensamento e da cultura? Com a fragmentação e a censura no Cinema?”.

O cineasta Beto Matuck também criticou a postura do presidente, considerando que colocar filtros no conteúdo é uma forma de estabelecer censura dentro da democracia. “É mais um absurdo desse desgoverno. A Ancine é responsável pela descentralização da produção audiovisual e por meio dos acordos regionais, o Maranhão foi um dos favorecidos. É uma agência reguladora e tem autonomia de gerir seus recursos, sem precisar interferir nos conteúdos. Censura é retrocesso. A marca dessa quadrilha que assaltou a democracia é a ignorância. A Caixa de Pandora foi aberta”, brada.

Impacto
Para Francisco Colombo, controlar ou extinguir a Ancine são atitudes criminosas. Ele acredita que a atividade audiovisual seria fortemente impactada, gerando, em vez de retorno econômico, desemprego. “Exatamente tudo o que o país precisa, desesperadamente, evitar! As recentes declarações do presidente, apesar de aberrações, não me causam espanto. Muito antes de se saber que seria candidato à presidência, já era comum expressar opiniões sobre assuntos que desconhece, apenas evidenciando a estreiteza da sua visão de mundo”, critica o cineasta.

Colombo é enfático ao dizer que “a censura é inaceitável”. “O presidente quer que sejam feitos filmes sobre o quê? Até o exemplo que ele utilizou para ilustrar o seu ‘raciocínio’ foi infeliz. Ele viu mesmo Bruna Surfistinha? Com certeza, não. Aliás, aproveito para sugerir que os leitores assistam à obra. Em todo caso, analisando apenas pelo viés econômico, o filme foi um sucesso comercial, tendo dado excelente retorno aos cofres públicos. A solução de conflitos, para Bolsonaro, é possível de duas formas: evitando o debate de temas que considera desagradáveis para ele, para o grupo ou para os seguidores, ou pelo uso da força”, acrescenta.

E o cineasta finaliza: “Fica evidente, com tudo o que declarou o presidente, que ele não convive bem com divergências. Isto não é nem um pouco saudável para a democracia. Essas ideias obsoletas, que fazem muito sentido quando se observa o conjunto da atuação dessa gestão à frente do Governo Federal, são típicas de regimes totalitários. Mesmo que o interesse seja ‘apenas’ no orçamento da Ancine”.

Na opinião do produtor e cineasta Raffaele Petrini, a proposta do presidente de implementar um filtro às produções cinematográficas, além de ser totalmente inconstitucional, “é uma tentativa descarada de implantar um regime de censura à arte cinematográfica brasileira. Cinema gera emprego e renda. Uma intervenção da Ancine provocaria o desmoronamento de uma das indústrias mais sólidas do país, que gera milhares de empregos diretos e indiretos. Uma indústria reconhecida internacionalmente pelo seu prestígio. Este ano, tivemos representação brasileira nos principais festivais de cinema do mundo: Berlim, Cannes, Locarno e, provavelmente, teremos em Veneza também”, diz

Petrini produziu o longa-metragem “Chorando Se Foi”, dirigido por Marcos Ponts, com recursos da Ancine e do Governo do Estado do Maranhão. O filme criou, até agora, 70 empregos diretos e mais de 200 indiretos, somente na fase de produção. A equipe é 90% composta por maranhenses, boa parte estudante de cinema em seu primeiro emprego em um longa-metragem.

“Vale lembrar que todas as produções cinematográficas realizadas com verba do Fundo Setorial do Audiovisual (Ancine) devem obrigatoriamente ao erário o 70% da bilheteria até atingir o valor total do investimento. Após ter recuperado o investimento inicial da obra, a produtora continua cedendo ao Fundo 30% de todo o lucro”, destaca.

Mais

Entre suas críticas ao financiamento proposto pela Agência, o presidente Jair Bolsonaro disse não admitir que dinheiro público incentive produções como “Bruna Surfistinha” (2011). Dirigido por Marcus Baldini e protagonizado por Deborah Secco, a cinebiografia sobre a ex-prostituta Raquel Pacheco captou R$4.283.019,99 em renúncia fiscal, segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema, gerido pela Ancine, e teve mais de 2 milhões de expectadores, gerando 500 empregos diretos e rendeu R$19.965.570 em bilheteria à época.

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