Literatura

Uma voz de além-mar

Obra do escritor cabo-verdiano Germano Almeida traz a mesma tragédia de todos os povos colonizados: a da identidade

*Adonay Ramos Moreira - Escritor

Atualizada em 11/10/2022 às 12h25
Germano Almeida, escritor cabo-verdiano ganhador em 2018 do Prêmio Camões de Literatura
Germano Almeida, escritor cabo-verdiano ganhador em 2018 do Prêmio Camões de Literatura (Germano Almeida)

Que a fama nada mais é do que um conjunto de mal-entendidos, isso já nos havia alertado Rainer Maria Rilke em seu belíssimo livro sobre Auguste Rodin. Entanto, o que não suspeitava o poeta alemão, e não havia mesmo como suspeitar, é que, ao redor dessa face negra da celebridade, há um lado mais nobre, uma face mais consoladora e útil, que consiste precisamente em trazer à luz os tesouros que até então estavam distantes de nossa inteligência e de nosso coração. E tal é o caso de Germano Almeida, escritor cabo-verdiano ganhador em 2018 do Prêmio Camões de Literatura, certamente a maior honraria literária da língua portuguesa e sonho e ambição de muitos escrevinhadores desta terra e de além-mar.

Germano Almeida é mais um desses tristes e ilustres casos do completo abandono ao qual submetemos o nosso idioma e a nossa cultura. Escritor originalíssimo, com uma carreira já consolidada e consagrada, sua existência é praticamente desconhecida entre nós, nobres falantes de uma língua que nem admiramos nem conhecemos, absorvidos como estamos em conhecer os modismos do dia das culturas estrangeiras.

O que há então em Germano Almeida de tão original? Tudo e nada. Nada, porque a originalidade apenas por si mesma é um sonho pífio e ambição de principiantes. Já T.S. Eliot nos havia ensinado que os momentos de maior individualidade de um artista são justamente aqueles nos quais ele dialoga com a tradição. Tudo, porque em sua obra a velha língua de Camões e padre Antônio Vieira adquire um sopro novo, torna-se enxuta, precisa e converte-se em um poderoso instrumento para a criação de uma obra que não apenas pretende descrever uma cultura, mas sobretudo fundá-la. A afirmação pode parecer excessiva, mas cai como uma luva à literatura desse grande escritor cabo-verdiano. E não é outra coisa que vemos em seus livros. Com um humor profundo e cortante e por vezes mordaz, Germano Almeida despe e põe a nu a estrutura política, moral e social de seu povo e de sua gente, desnuda as tramas ocultas de uma sociedade que, atônita com sua independência, anda às cegas à procura de sua própria personalidade. Vemos em seus livros a mesma tragédia de todos os povos colonizados: a tragédia da identidade. E não há como não nos vermos refletidos em livros como “O Testamento do Sr. Napumocemo da Silva Araújo”, “O Meu Poeta” e “Os Dois Irmãos”.

Pode-se dizer de sua obra as mesmas palavras de Santo Agostinho: “Noli foras ire; in interiore homine habitat veritas”, ou seja, não busques fora; a verdade habita no interior do homem. E é precisamente a partir do homem cabo-verdiano, com suas fraquezas e glórias, que Germano Almeida constrói uma obra que, por muitos aspectos, inaugura a moderna literatura nacional da República de Cabo Verde. Seus personagens são universais, ainda que não se afastem de sua ilha. Seus livros levam às últimas consequências a célebre frase de Tolstói, segundo a qual, para ser universal, é preciso que se pinte antes de tudo a sua aldeia. A trágica estória, por exemplo, dos irmãos André e João, do romance “Os Dois Irmãos”, poderia se passar com a mesma fidedignidade em Cabo Verde, França, Rússia ou Brasil, pois o cenário exterior, ainda que extremamente bem estudado pelo romancista, não confere à obra um regionalismo decadente e limitador. No caso de Germano Almeida, a sua ilha é uma espécie de microcosmo, uma imagem sem máscaras de um mundo sem muitas ambições além de um bom almoço, um não menos agradável emprego público e uma certa notoriedade, seja por qual motivo for. Livros como “O Testamento do Sr. Napumocemo da Silva Araújo”, “O Meu Poeta” e “Os Dois Irmãos” servem quase como uma epopeia de um povo em busca de sua própria face. A corrupção, o blefe, a pobreza, os pseudointelectuais, as falsas celebridades, os afetados, os oportunistas, o provincianismo grosseiro e ululante, a opressão cultural, todos esses vícios que nos são velhos conhecidos e que foram magistralmente descritos através das penas de nossos maiores mestres, como Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo, estão presentes na obra desse grande ironista da ilha de São Vicente.

Poucos escritores contemporâneos em língua portuguesa terão sabido, como ele, fazer da ironia e da sátira uma arma tão poderosa, sem que, com isso, se perdesse a objetividade do estilo e a profundidade da sondagem psicológica de seu povo. Germano Almeida não é um retratista. Sua prosa vai além do simples e vulgar realismo. Há mesmo nela certo riso rabelaisiano, o mesmo riso que encontramos nas obras de Erasmo de Roterdã, Swift, Voltaire e Machado de Assis.

Podemos julgar o alcance de uma língua quando esta possibilita aos seus falantes a capacidade de descrever ou imaginar o real de tal forma que o possamos tocar com nossas próprias mãos. E esse é o caso de Germano Almeida, um dos escritores mais importantes e sofisticados de nosso idioma. Sua prosa marca um divisor de águas na literatura não só de Cabo Verde, mas de toda a língua portuguesa. Sua contribuição para a literatura lusófona vai além de apenas alguns romances a mais para nosso idioma. Ela consiste, acima de tudo, em uma visão penetrante, irônica, sarcástica e crítica de nossa própria civilização, de nossa própria humanidade exilada e precária, tudo isso narrado com a cadência e o humor de quem nos conta um caso, o que faz do autor de “O Testamento do Sr. Napumocemo da Silva Araújo” um dos maiores contadores de história da língua de Camões.

Irônica, sensual e profunda, a obra de Germano Almeida é leitura obrigatória não só a todo falante de nossa língua, mas, sobretudo, a todos os amantes da boa literatura. Nela, podemos ver a nossa própria face, as nossas próprias glórias e tragédias, bem como percebemos que, apesar de praticantes de um mesmo idioma, estamos tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes como as ilhas que formam o arquipélago de Cabo Verde.

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