Coluna do Sarney

Bush, meio amigo

José Sarney

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27

Jorge Amado, numa das centenas de conversas que tivemos ao longo da vida, nas quais ele não deixava de colocar uma pitada de humor, contou um encontro com Neruda. Jorge perguntou-lhe por um companheiro de geração, e ele respondeu: “Não me pergunte por ninguém, Jorge. Todos já morreram.”

Agora, com a morte do Bush, eu me pergunto pelos companheiros do tempo em que fui presidente. Lembro-me de Andrés Pastrana, Andrés Pérez, Helmut Schmidt, Mário Soares, Shimon Peres, François Mitterrand e tantos. Agora foi a vez de George H. W. Bush, o Bush pai.

Conheci George Bush nas Nações Unidas. Eu era delegado do Brasil em uma conferência. O embaixador Sérgio Frazão levou-me a um jantar oferecido à Delegação brasileira por Bush, então embaixador dos Estados Unidos na ONU. Foi uma reunião formal. Guardo a memória dos belos quadros de pintores célebres americanos, daqueles retratos em que eles carregavam no vermelho das faces. Admirei-me da coleção tão grande: eram, disse-me, da National Gallery.

Depois, já presidente, fui em visita oficial aos Estados Unidos. Ele era vice de Ronald Reagan. Tivemos um café de trabalho, eu acompanhado por Ricupero, Sayad, Abreu Sodré e Funaro. Os americanos queriam reverter a posição do Brasil de ter saldos positivos na balança comercial. Explicamos que eles tinham sido campeões durante mais de cem anos. Os meus acompanhantes técnicos ficaram irritados, e a reunião azedou, sobretudo pela participação de James Baker, que era secretário de Tesouro. Bush sentiu que não podíamos prosseguir, me pediu desculpas e disse que tinha um compromisso no Senado. Saímos, todos com cara de meninos amuados.

Nós nos encontramos ainda nas recepções oficiais, inclusive ele presidindo a sessão do Senado em que fui homenageado.

Depois, ele tornou-se presidente, e tivemos muitos encontros. Alguns deles bons, outros não tanto. Ele insistia em falar da Amazônia, e eu acabei lhe lembrando que os próprios americanos, com a Amazon River Corporation, haviam projetado sua devastação, evitada pela população de Belém do Pará, que não deixou passar seu navio. Ele não gostou, nem eu. No sepultamento do imperador Hirohito, do Japão, num frio insuportável, tivemos outra conversa azeda.

Mas esses encontros difíceis foram exceções. A última vez, nos 200 anos da Revolução Francesa, Mitterrand, que tinha um irmão muito ligado ao Brasil, prestou-me uma homenagem e colocou-me a sua esquerda, e a sua direita sentou Bush. No imenso salão, entre os chefes de Estado de mais de 150 nações, estava o filho da Dona Kyola, de Pinheiro.

Com a morte do Bush, recordei todos os nossos encontros, mas o balanço que faço é de um excelente político, educado e cativante, que falava pouco e era gentil com as pessoas. Nos meus últimos anos de Senado senti que devia sair da política militante, porque meus discursos eram quase só panegíricos dos políticos, intelectuais e meus amigos que morriam. Lembrei-me de Jorge Amado. Todos já morreram.

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