Literatura

Sarney & Cleto Bonfim

Ensaio completa a tríade sobre o romance “Saraminda”, obra de José Sarney

Ramiro Azevedo/ Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h29
Livro Saraminda, de José Sarney
Livro Saraminda, de José Sarney (Saraminda)

SÃO LUÍS- Este ensaio completa uma tríade de análise do romance “Saraminda” (SARNEY,São Paulo: Leya, 2014), a Princesse Créole (O Estado do Maranhão,8/6/14), continuado com Sarney e Saraminda (O Estado do Maranhão, 21/1/17) e agora arrematado com Sarney & Cleto Bonfim.

No primeiro artigo focou-se a personalidade feminina – femme fatale — que domina a diegese ficcional do escritor José Sarney. Dela se diz ¨ Fêmea como sou o preço que você paga merece respeito.¨(p.48).¨ Onça, traiçoeira, feroz, sofredora(...)¨ (p.186).

Ela intermedeia a narrativa, entretanto coube a Kemper ( cf. O Estado do Maranhão, 21/1/17) arrematar o romance: ¨Por que meu destino se acabou?¨ (p.145).

A abertura romanesca principia com Cleto Bonfim: ¨ Mas este garimpo tem dono, é de Cleto Bonfim,e aqui só se entra com sua ordem.¨ (p.21).

Cleto provém de Klétos(Gr), ¨chamado, escolhido¨. (OLIVER,2010,p.101). Inicia a diegese, bruto senhoril, e no clímax romanesco liquida a personagem central. Senhor feudal (do garimpo) da violência, do horror e da luxúria.

O trio da narrativa do escritor José Sarney (Saraminda, Cleto Bonfim e Jaques Kemper) tem em torno de si um exército de personagens planos, coadjuvantes, embora importantes. Eles conferem à trama romanesca o realismo mágico tão perseguido pelos escritores, em todos os tempos. A magia, o misticismo, a crença anímica etc., se distribuem nos amuletos, cachorros, navalha, exorcismos, vidências, pressentimentos, fenômenos do trópico de Calçoene e outros.

1- A Estética de Recepção
O tratamento epistemológico provém da Estética de Recepção, com base em Iser, Jauss, Zilberman, Lime e Rifaterre. O leitor torna-se, então, uma ¨ estrutura textual¨, baseado numa concepção de leitura, assimilação e interpretação (a sinfronia tão desejada pelos escritores!) que é intuída ou prevista pelo próprio texto. Lendo Cleto Bonfim, o narratário cria o mundo do realismo fantástico posto em cena no romance desse brutos do garimpo. É um mundo antípoda à urbe dos shoppings. Outrossim, o hermeneuta, conforme Rifaterre, é possuidor de um Ethos, Id Est, sua ideologia.

A Estética de Recepção trabalha as inferências culturais do leitor e a capacidade dialógica do narratário, tendo em vista as vozes que atuam no texto. O leitor, portanto, conforme Iser, traz consigo um painel social, histórico e cultural. O texto, então, se articula com as outras manifestações culturais. É o que Bakhtin dizia do texto dialogar com outro(s) texto(s).A polifonia discursiva. Enfim, são os efeitos de sentidos que o discurso ficcional deflagra no leitor. Recepção e efeito, em síntese, configurando uma experiência estética. Mas tenha-se em mente: agora, o leitor do séc.XXI é o da pressa, do barulho, da violência, da confusão etc.
Koch e Elias (O texto e seus conceitos. São Paulo: Parábola,2016,p.32) afirmam que ¨ (...) o texto é uma realização que envolve sujeitos, seus objetivos e conhecimentos(...)¨. A ideologia do decodificador.

Jauss afirmava que o prazer estético (prazer cognoscente) constrói-se no Reader´s Mind, através da leitura. Cleto Bonfim, por si só, já é uma leitura complexa. Um programa narrativo, diria Greimas.

2- Sarney e Cleto Bonfim
No mundo ocidental colhe-se em Aristóteles um dos primeiros interessados pelos agentes ficcionais ( personagens) que traduzem ações e vida, o sucesso ou insucesso. Esses agentes ficcionais assumem caracteres dos mais diversos. A Cleto Bonfim coube-lhe sustentar o início, o meio e o clímax da Saraminda. É o dono do ouro( humano e material); é o bruto por excelência da sociedade atrabiliária de Calçoene. Carnalidade extrema. Brutalidade ilimitada. O eu lírico de Sarney apresenta-o assim: À frente deles, o único que portava revólver, uma figura magra, de barba rala com barbicha. De estatura mediana, olhava sempre para baixo,falava sem empatia, frágil de rosto e corpo(…) inspirava desconfiança.¨ (p.23).

Desenvolvendo-o, Sarney vai traçando e trançando seu perfil de bruto gentilhomem> ¨Nunca fui homem de matar veado em espera. Eu sabia que ali tinha ouro (...)¨(p.24).

O passo seguinte é ligar Cleto a Saraminda num ambiente devasso de bebidas, mulheres, luxúria etc.
A narratividade tem em Cleto Bonfim um dos fundamentos semiodiscursivos para o sucesso desse Décor tropical, aurífero, sexual, brutal e sem lei. Sarney confere a esse personagem redondo a literariedade esperada pelo narratário. O realismo moderno do texto poupa o decodificador de esforços para traduzir a mensagem linguística inserida também iconicamente.

É Cleto Bonfim um anti-herói; o leitor, em sua estética de recepção, tradu-lo com um personagem feio, antiatlético, inculto, traiçoeiro e violento. Mas não está só, pois os personagens planos, que o circulam, oferecem no velamento/desvelamento textual aspectos que multiplicam o Décor de Saraminda. O eu lírico de Sarney amplia-os.

Cleto Bonfim, para o leitor diligente, é reduzido em seu quirógrafo a um estereótipo, só que um meio quasímodo de posse do ouro. Seu feudo é a mata tropical e a urbe da luxúria nos trópicos.
Sarney trabalha-o pela ação (personagem e trama) e pela imagem psicológica(aspectos físicos e psíquicos .
Cleto Bonfim é um deslocado no tempo e no espaço, condicionado a um cosmo silvático e sexual. Contudo, ele é um eixo fundamental nos planos da imanência, narrativo e discursivo.

Este dono do ouro permite uma relação dialética entre o autor, a obra em si, e principalmente o narratário. Por ele, Sarney pôde construir um todo autônomo e autossuficiente (afinal, entre outros bens, é o dono do garimpo, dono da fêmea ).

Por Cleto Bonfim, ganha importância o leitor na coprodução do significado ficcional, durante o(s) ato(s) de leitura.

O realismo mágico se distribui na mataria, nas chuvaradas, nos cachorros, no punhal, nas visões, nos desejos carnais etc.

Por esse bruto do garimpo o horizonte de expectativas, (conforme Jauss), se espraia nas reações do receptor. O leitor se nutre do horror e do sexo. As expectativas, entretanto, variam conforme a estética de recepção. É o plural do texto. É o Reader´s Mind que pode estabelecer a aproximação ou a distância do narratário. Destas, dizia Jauss, se estabeleceria o caráter artístico da obra. Neste aspecto, Sarney se revela senhor do seu texto.

3 – Cleto Bonfim no Universo da Leitura
A apreciação dos circunstantes sobre esse bruto do garimpo propicia ao narratário um sistema imagístico de expectativas mentais, históricas (o garimpo de Serra Pelada e outros garimpos continuam no Brasil de hoje) e culturais.

Calçoene é séc.XIX.Serra Pelada é o pleno séc.XXI. O mito do ouro é forte, e altamente condicionante, em plena Robótica, Eletrônica, Globalização etc.
No universo da leitura, Cleto Bonfim é apresentado em muitas facetas. A saber: ¨ Gostei de Bonfim, porque ele me deu valor(...)dez quilos de ouro(...)¨(p.89). ¨Posso ir, Senhor Bonfim? Não, Senhor Kemper, tome um café(...)¨(p.149).

Ele vai contracenando no percurso diegético da narrativa – com Firmino, Clément, Raimunda, Maruanda, Astrolábio, Marie Turiu,Kemper e outros mais.A partir do capítulo 15, porém, o entrecho ganha o concurso importante de um personagem da tríade: Jaques Kemper.Este nessa sequência teve momentos de perigo de morte. Escapou por pura sorte.

O universo vivencial de Cleto Bonfim dialoga intimamente com o espectro de decodificação semântica e textual que o narratário projeta.E neste particular a prosa de Sarney é hábil em estabelecer a sinfronia adequada oriunda do Décor aurífero de Calçoene. O impacto causado pelo personagem é um condicionante da cosmovisão silvática desse mundo tropical, sem lei, sem ética, desregrado e indomável.

O estranhamento, tão a gosto dos estruturalistas, o autor de “Saraminda” exercita em toda a diegese, possibilitando o plural do texto. A muitas leituras.

A participação de Cleto Bonfim é sempre pertinente ao percurso narrativo (e gerativo, diria Greimas) proposto pelo escrito. Aqui, ademais, no desvelamento da participação diegética do dono de Saraminda, importa atentar-se para o plural do texto. Para esse aspecto Iser chama a atenção do hermeneuta, tornado leitor, tradutor do sistema semiótico do plano narrativo. As várias leituras e interpretações do narratário, afinal, a experiência comunicativa da ficção explicita a função social do discurso artístico.

Contracenando com Clément, o dono do garimpo expõe o seu Ethos rancoroso, atrabiliário, impulsivo: ¨ De novo Clément você sempre me tira da paz, faz remoer meu ódio e minha paixão.¨ (p.54). O universo desse homem do garimpo é o Décor tropical, agressivo, descrito como¨ (...)borbotões grossos, zoando nas folhas, um chiado firme(...).(p.72).

Esse Décor aurífero condicionava os atores desse cenário: ¨ Todos obedeciam ao mesmo ritmo. Ao levantar, o café com farinha de puba ou cuscuz de arrroz e, de bucho forrado, era pegar a lata(...).( p.103).
Eis aí, brevemente, o universo da leitura que Sarney proporciona à Estética de Recepção do leitor, se brasileiro, bastante conhecedor do que a mataria do Norte amazônico oferece; se estrangeiro, a exemplo de Claude Lévi-Strauss, o ambiente silvático e agressivo dos trópicos, tomado com admiração e surpresa.
Em síntese: é essa surpresa e admiração que permeiam a sensibilidade do leitor para o realismo mágico e para o estranhamento ficcional que Sarney colocou no personagem Cleto Bonfim, secundado por uma dezena de coatores pertinentes e integrantes dessa gesta silvática em torno do ouro de Calçoene, de uma fêmea tropical, de um mundo sem lei, ética e valores humanos.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Ramiro. Captive of time. São Luís: Space Gráfica Ltda, 2013.

ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético.São Paulo: ED.34, 1996.

JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária.São Paulo: Ática, 1994.

REIS,Carlos e LOPES,Ana C.Dicionário de narratologia.7ª Ed.Coimbra: Almedina, 2007.

ZILBERMAN, Regina. Estética de recepção.São Paulo:Ática, 2009.

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