O homem que carregava pedras
Entre pedras guardadas e vozes exaltadas, João das Sombras lembra que violência nunca é justiça.
Dizem que, na cidade de Pedra Clara, vivia um sujeito chamado João das Sombras. Ninguém sabia exatamente de onde viera, mas todos sabiam de uma coisa: ele caminhava pelas ruas com os bolsos pesados, como se guardasse dentro de si um fardo que não sabia nomear.
Era um homem que observava. Observava a pressa, o medo, o grito engolido, a fúria contida. Observava, sobretudo, a violência — essa que, de tão presente, já nem surpreende mais ninguém. A violência do soco e do disparo, sim, mas também a violência que os olhos disparam, a que se escreve em comentários virtuais, a que se embala em discursos inflamados e se devolve como se fosse justiça.
João dizia que cada pessoa carrega uma pedra. Às vezes pequena, às vezes enorme. Uns atiram a sua pedra à primeira provocação. Outros a embrulham em silêncio, fazem promessas de paz, mas a lançam na primeira oportunidade de vingança. E havia aqueles — raros — que, como João, apenas a seguravam, tentando entender o peso de tê-la nas mãos.
Nos últimos dias, os acontecimentos no país fizeram a cidade de Pedra Clara parecer um reflexo de nós mesmos: ruas divididas, ânimos exaltados, dedos apontados como lâminas. E João, que caminhava no meio dessa tempestade de vozes, repetia para quem quisesse ouvir:
— Violência é sempre violência. Não muda de nome porque muda de lado.
Mas João também tinha um medo discreto: o de que o povo começasse a se acostumar. Porque acostumar-se à violência é como deixar a lâmpada queimar aos poucos — primeiro se estranha, depois se tolera, por fim se vive no escuro. Ele temia que a sociedade começasse a romantizar a brutalidade, transformando agressões em bravura, retaliações em coragem, rachaduras morais em heroísmo de ocasião. Nada é mais perigoso do que dar à violência o perfume da normalidade. Quando isso acontece, ela deixa de chocar — e passa a guiar.
O povo, assustado e irritado, dizia que certos atos merecem resposta dura; que a vingança é um direito quando a dor é grande demais. João, contudo, perguntava:
— E quando a vingança termina? E quem devolve o que se perde?
Ninguém respondia. Talvez porque a vingança não devolve nada — só prolonga o que já foi destruído.
João continuava sua ronda silenciosa pela cidade. Via pais com medo, jovens com raiva, velhos cansados de esperar por dias melhores. Via pessoas transformando indignação em justificativa para ferir, como se a dor lhes desse licença moral. Via também os que celebravam a violência quando era cometida “pelos seus”, e a condenavam apenas quando vinha “dos outros”.
Então ele recolhia mais uma pedra do chão. Guardava no bolso, sentia o peso. E pensava que o mundo está cheio de gente pronta para atirar, mas quase ninguém disposto a carregar o fardo de refletir.
Era irônico: a sociedade queria segurança, mas buscava vingança; queria paz, mas alimentava ódio; queria justiça, mas confundia justiça com retorno imediato da dor.
João, com sua voz mansa, dizia:
— A violência não nos torna fortes. Só nos torna parecidos com aquilo que tememos.
— E vingança não é justiça. É apenas violência com nome de fantasia.
Ao fim do dia, quando o sol se escondia atrás das casas tortas de Pedra Clara, João sentava no banco da praça e virava seus bolsos ao avesso. As pedras rolavam no chão, silenciosas. Nenhuma delas seria lançada. Ali ficavam — testemunhas mudas de um homem que decidiu não alimentar o ciclo.
E enquanto a noite caía, João imaginava o que seria do país se, por um dia que fosse, cada pessoa desse o mesmo destino às próprias pedras: jogá-las no chão, não no outro.
Talvez assim — só talvez — entendêssemos enfim que a violência é sempre violência, venha de onde vier, carregue o discurso que carregar. E compreenderíamos, quem sabe, que a vingança é só a continuação da ferida, nunca a cura.
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