COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Compridos dias cumpridos

Mais do que cumprir os dias, é preciso habitá-los com presença, sentido e humanidade.

Kécio Rabelo

O cenário muda. Às vezes muda abruptamente, como quem troca o pano de fundo sem pedir licença. Outras vezes, muda devagar, quase sem que a gente perceba. Mas o trabalho — no sentido mais profundo da palavra — continua. E não falo apenas do trabalho profissional, das tarefas listadas na agenda ou das metas que piscam na tela do computador. Falo do trabalho de existir, de sustentar escolhas, de permanecer inteiro num mundo que frequentemente nos empurra para o automático.

Cumprir os dias não é nada. O calendário faz isso por nós. Ele avança impassível, mesmo quando estamos cansados, distraídos ou desanimados. O verdadeiro desafio está em habitar os dias, dar a eles densidade, sentido, memória. Um dia vivido não é apenas um quadrado riscado no papel: é um encontro, uma decisão, uma conversa que muda algo por dentro, um silêncio que ensina, um erro que amadurece.

Na vida profissional, isso se traduz em algo simples e ao mesmo tempo exigente: trabalhar não apenas para entregar resultados, mas para reconhecer-se no que se faz. Não há realização possível quando o ofício vira apenas sobrevivência. O trabalho que realiza é aquele que dialoga com quem somos — ainda que traga cansaço, tensão e desafios. O problema não é o esforço; é o vazio.

Na dimensão humana, viver bem os dias passa, inevitavelmente, pelas relações. São elas que quebram a rigidez do tempo. Um café compartilhado sem pressa, uma taça de vinho no meio da semana — quase um gesto de resistência ao excesso de urgência —, uma escuta atenta, uma discordância honesta, um afeto preservado mesmo em meio às diferenças. Relações vividas com presença transformam dias comuns em marcos invisíveis da nossa história pessoal.

Curiosamente, essa necessidade de dar sentido ao tempo acompanha a humanidade desde muito cedo. A contagem dos dias e dos anos não nasceu apenas da observação dos astros, do movimento do sol e da lua. Ela surgiu como uma tentativa de organizar a existência, de criar referências, ciclos, começos e fins. Os primeiros calendários — solares, lunares, agrícolas — ajudavam os povos a plantar, colher, celebrar, esperar. Contar o tempo sempre foi, no fundo, uma forma de domesticá-lo, de não se perder completamente dentro dele.

A invenção do ano novo, essa fronteira simbólica que atravessamos quase ritualisticamente, cumpre exatamente esse papel: o de nos permitir recomeçar. Sem essa convenção — esse acordo coletivo de que um ciclo termina e outro se inicia — talvez a vida fosse exaustiva demais. Um fluxo contínuo sem pausas, sem balanços, sem a possibilidade de dizer: “agora é diferente”. O recomeço não apaga o que passou, mas oferece fôlego para seguir.

Por isso, quando dizemos que “o cenário está diferente, mas o trabalho continua”, estamos afirmando algo maior: que não somos reféns das circunstâncias, mas também não estamos fora delas. Continuar não é insistir cegamente; é ajustar o passo, mudar a rota quando necessário, sem perder o sentido do caminho.

Que venha 2026, então — não como uma promessa ingênua, mas como um convite consciente. Que traga desafios suficientes para nos manter vivos e vitórias capazes de nos lembrar por que vale a pena. E que, mais do que cumprir os dias, saibamos vivê-los bem, com verdade, com gosto e com humanidade. E, nesse intervalo breve entre um compromisso e outro, o tempo passa? Parece que sim. Passa o tempo, e nós passamos também.


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