A invisibilidade do borderline no processo penal
“A inimputabilidade que o Direito Penal não pode ignorar”
Este é um caso real que desaguou em meu escritório. Não é um caso recente, mas resolvi escrever sobre o assunto porque somente agora veio uma resposta e quero trazer ao debate o grande desafio que foi, de desenvolver uma tese sobre uma realidade ainda pouco explorada, tanto pela literatura jurídica quanto pelos tribunais. Explico:
Recebi em meu escritório um homem jovem, primário, sem antecedentes criminais, ocupação lícita, família estruturada, que havia se envolvido em um episódio de agressão, lesão corporal leve.
Durante a entrevista percebi naquela fala um traço de sofrimento psíquico profundo, com histórico de instabilidade emocional; impulsividade descontrolada para uso de bebidas alcóolicas e drogas; comportamento autodestrutivo; diversas tentativas de autoextermínio; autolesões e passagens por clínicas, quando surgiu a revelação. “Sou border”.
Após a consulta, assumi o caso: acusação de crime de lesão corporal, o que poderia parecer simples. De fato, até poderia ser, se não fosse contra uma mulher com quem se relacionava e, portanto, a Lei Maria da Penha veda o rito dos juizados especiais, tornando o caso complexo.
Resolvi estudar e analisar a profundidade de uma frase dita pelo cliente que muito me marcou: “Ser border é viver o caos.”
Não tive dúvida de que, diante de mim, estava sentando um homem em colapso e não um criminoso.
Pois bem!
Debrucei sobre o assunto “Transtorno de Personalidade Borderline”. Pedi ao cliente um relatório do psiquiatra que o acompanhava; pedi um parecer técnico de um psiquiatra especialista em transtornos de personalidade que muito admiro e de posse de todo material, me deparei com um grande desafio porque descobri que a pessoa que sofre de borderline, quando entra em surto, em crise, perde a capacidade de frear impulsos.
Ali surgia a minha tese de defesa, a base concreta para sustentar o que eu já sabia no íntimo: que aquele homem não tinha plena capacidade de autodeterminação no momento do fato.
A partir daí, assumi o risco: sustentei a inimputabilidade penal por ausência de capacidade de autodeterminação, com base no artigo 26, caput, do Código Penal, todavia, novamente me deparei com outra barreira quase intransponível: a doutrina penal praticamente ignora a pessoa que sofre de borderline e a jurisprudência trata o transtorno com superficialidade, na verdade, mal toca no assunto pois trata o sofrimento do “border” como desvio de personalidade “não incapacizante”.
Deixando a hipocrisia de lado, sabemos que vivemos em um cenário onde a psiquiatria forense ainda é lida com filtros morais.
Defender um borderline acusado de crime é quase um ato de resistência, porque, no fundo, a pessoa que sofre de borderline é triplamente vítima: da própria mente, da ignorância social e da indiferença jurídica.
Mas eu insisti. Pedi a instauração do incidente de insanidade mental.
O magistrado encaminhou o processo para a perícia oficial e veio a ratificação do que o parecer técnico da defesa já apontava: transtorno mental, colapso psíquico.
Continua após a publicidade..
Então veio a alegria: o juiz deferiu a instauração do incidente e vi ali a oportunidade de desenvolver um debate, até então cego, surdo e moralista.
Vejo no incidente, um raio de luz de humanidade em uma máquina de moer gente, que é o nosso sistema punitivista.
A pessoa que sofre de borderline não escolhe surtar, não premedita, não planeja ferir, ela simplesmente implode e depois explode, em absoluta imprevisibilidade.
Ninguém escolhe sofrer de Borderline. Não está na capacidade de quem sofre do transtorno, o voluntarismo, mas sim, é vítima de um comportamento de excessos e incontrolável em razão de uma desregulação emocional que é patológica.
O criminoso decide, o borderline não, ele colapsa! Vive no limite. É limítrofe!
É possível que, para muitos, a instauração de um incidente de insanidade mental pareça apenas uma medida processual comum, mas neste caso específico, diante de uma pauta ideológica tão desenfreada, vejo como um grande passo para o avanço do processo penal.
Significou, para mim, que o sofrimento mental precisa ser respeitado como fato jurídico relevante e não varrido para debaixo da toga. Foi uma demonstração de um gesto de lucidez judicial, que escutou a defesa ao invés de julgar automaticamente.
O que eu pedi à Justiça não foi impunidade, foi uma chance de resgatar um ser humano de condenações simbólicas e populistas.
Pedi uma chance para que este homem tenha um processo penal justo, com o reconhecimento de que a sanção penal não pode recair sobre quem agiu sem liberdade de escolha.
O incidente ainda está na gênese, na fase de quesitação, mas abrimos um espaço para falarmos, com mais profundidade, sobre o Transtorno de Borderline no sistema penal e mostrar que não é um transtorno banal, não é “manipulativo”, “conveniente”, “uma desculpa”.
Esse caso me marcou e eu resolvi compartilhar porque me fez reafirmar que a verdadeira coragem, no Direito Penal, é defender o ser humano quando o sistema já decidiu que ele não merece defesa.
Sâmara Braúna é advogada há 24 anos, criminalista, especialista em liberdade, garantias constitucionais, em violência de gênero e crimes sexuais. Pós-graduada em Direito Penal. Conselheira Estadual OAB/MA.
Saiba Mais
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.
+Notícias