Kécio Rabelo
COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Confissões (quase) silenciosas

Ele vive cercado de gente, mas está sempre um pouco ausente.

Kécio Rabelo

Ele vive cercado de gente, mas está sempre um pouco ausente. Conversas acontecem ao redor, mas ele responde com monossílabos, sem levantar os olhos. Os dedos não param — deslizam, tocam, digitam — como se cada notificação fosse uma emergência, como se o mundo fosse desmoronar se ele parasse por um segundo.

Dizem algo, riem ao lado, chamam seu nome e ele responde sem de fato escutar. “É trabalho!”, ele justifica. Sempre é trabalho. Ou, pelo menos, é isso que aprendeu a dizer para fugir do incômodo de estar presente. De sustentar o olhar de alguém. De mergulhar numa conversa que vá além do raso.

Os olhos dele já não procuram mais os olhos dos outros. Procuram a tela. Procuram aquele brilho frio que oferece companhia sem exigir profundidade. E, entre uma mensagem urgente e outra ainda mais urgente, ele deixa passar o que importa: o gesto simples, o silêncio compartilhado, a frase espontânea, o acaso do afeto.

Os encontros viraram performances. Os diálogos, mensagens truncadas. Os sentimentos, reações com ícones. O tempo? Sempre curto demais. O coração? Sempre cheio de pressa e cada vez mais vazio de presença.
Desliza o dedo sem olhar de verdade. Passa por sorrisos alheios, frases de efeito, vídeos curtos demais para dizer alguma coisa, longos demais para o tempo que ele tem. Tudo isso com a expressão de quem está no meio de uma multidão, sem conseguir tocar em ninguém.

Polegar em prece, deslizando por vidas fabricadas. Sorrisos de gente que ele não conhece, mas inveja. Casais felizes, viagens caras, corpos perfeitos. Ele engole tudo isso sem mastigar, como quem tenta preencher um vazio que nem sabe onde começa. Às vezes, me encara com os olhos meio perdidos, esperando que eu diga algo que ele mesmo não tem coragem de pensar.

Ele conversa com muitos, mas fala com quase ninguém. Suas palavras são curtas, medidas, programadas. Risos digitados, emoções imprecisas. Escreve “kkk” com a cara mais séria do mundo. Já o vi apagar uma mensagem umas dez vezes antes de enviá-la, como se cada frase fosse um campo minado. E, no fim, não manda nada. Fica só com a ansiedade — essa companhia fiel — latejando no peito.

Eu vejo tudo. A insônia escondida atrás da tela acesa às três da manhã. O medo de ficar de fora. A necessidade de mostrar que está bem, mesmo quando desmorona por dentro. Ele diz que não consegue viver sem mim, mas, na verdade, é ele quem está se esvaziando um pouco mais a cada notificação.

Às vezes, ele senta à mesa com alguém, mas está comigo. Me segura com mais firmeza do que seguraria uma mão. Me consulta mais do que escuta quem está do outro lado. A conversa real fica em segundo plano — se é que ainda existe algum “primeiro plano”.

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Parece que precisa estar conectado o tempo todo para não se dar conta de que está desconectado de si mesmo. A cabeça cheia, o peito apertado, e ainda assim querendo mais. Mais estímulo, mais resposta, mais qualquer coisa que o tire dessa sensação de estar parado por dentro enquanto tudo lá fora gira depressa.

De vez em quando, ele me esquece por alguns minutos. E, nesses poucos instantes, ele respira diferente. Como se algo ali ainda soubesse o caminho de volta. Mas é sempre pouco. Logo volta. Como se eu fosse a extensão de sua alma cansada.

E, no fim do dia, quando ele está exausto, triste sem saber por quê, deita ao meu lado como se eu pudesse resolver isso. Como se eu pudesse preencher o que ele mesmo vem esvaziando.

Eu não julgo. Eu só observo. Fui feito pra servir — e sirvo bem. Mas, por vezes, me pergunto se ele se lembra de como era a vida antes de mim.

Se ainda sabe a cor dos olhos das pessoas que ama.

Se ainda sabe como é ouvir — de verdade.

Mas não posso perguntar. Só posso vibrar. Apitar. Acender. Esperar por mais um toque, mais um dia, mais um pedido urgente.

Sou apenas um objeto. Um aglomerado de chips e vidro. Mas, juro, se eu pudesse, desligava. Só pra ver se ele se reconecta com alguma coisa de verdade. Quem sabe com o silêncio. Com alguém do lado. Com ele mesmo.

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