Historiador Eric Hobsbawm diz que eleição de Lula tem importância para o mundo inteiro

O Globo

Atualizada em 27/03/2022 às 15h26

LONDRES - Ele nasceu em Viena, em 1917, mesmo ano da Revolução Russa. Aos 85 anos, o inglês Eric Hobsbawm, maior historiador marxista vivo, concluiu sua biografia,lançada no Brasil pela Companhia das Letras. Mas não é uma biografia convencional, porque suas memórias são a lembrança dos grandes momentos da História deste período. Ele conta passagens, como suas viagens ao Brasil, e analisa o papel do Partido dos Trabalhadores no país e na América Latina. Em entrevista ao GLOBO, Hobsbawm diz que a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva tem importância mundial. Mas está pessimista quanto ao futuro do mundo e prevê um período de guerras pela frente.

Quais as consequências de uma campanha militar contra o Iraque?

ERIC HOBSBAWM: A guerra é muito provável. Acredito que haverá um período de grande instabilidade, sobretudo porque os americanos acreditam que podem travar guerras agressivas em qualquer parte do mundo que serão ganhas por eles em qualquer circunstância.

O senhor acha que se seguirá um período de instabilidade econômica e política com as guerras?

HOBSBAWM: Não serão guerras mundiais, como as do século XX, a não ser que os americanos decidam ter um grande conflito com os chineses, que é a única guerra possível ao estilo antigo. Mas isso não significa que o mundo estará em paz ou que será um mundo sem grande violência e guerras. A instabilidade da economia é hoje, provavelmente, mais séria do que precisaria ser, porque os governos sob a influência dos Estados Unidos e do FMI decidiram, de forma deliberada, enfraquecer as instituições políticas para controlar a instabilidade financeira internacional. Penso que agora podem ser forçados a restituir, até certo ponto, alguns desses controles.

Quais as consequências dessa hegemonia americana para o Brasil e a América Latina?

HOBSBAWM: A verdadeira força da hegemonia americana na América Latina era mais econômica do que política. Por exemplo, a intervenção militar na América Latina esteve confinada a países pequenos, e não ocorreu na América do Sul. É possível que a Colômbia venha a ser uma nova exceção. Prova que há limites para o poder americano. Os americanos devem aprender que acontece a mesma coisa em escala global. O seu poder é relativo, exceto em termos militares.

No seu livro, o senhor fala da importância do PT para o Brasil e a América Latina. O que muda nesse sentido com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente?

HOBSBAWM: O crescimento de Lula e do PT têm significado histórico. É um partido de massa baseado numa classe trabalhadora industrial, como muitos que surgiram na Europa - eles ainda existem como governos ou a principal oposição -, mas isso era raro na América Latina. Marca uma transformação maior da política brasileira. A sua força vem de ter, gradualmente, atraído os trabalhadores mais pobres no Brasil, bem como intelectuais e profissionais. Mais ainda, ao contrário dos partidos trabalhistas europeus, tem o potencial de se tornar o partido da maioria no país. Lula recebeu mais votos do que qualquer outro presidente eleito democraticamente, com exceção de Ronald Reagan nos anos 1980, e isso é muito importante. É significativo para o mundo também.

Por que?

HOBSBAWM: Porque se pode dizer que a eleição de Lula é uma consequência direta da aplicação de reformas do FMI, do fundamentalismo de mercado, ao Brasil. Foi a resposta de brasileiros de todas as classes ao que se costumava chamar de Consenso de Washington. Quanto mais as pessoas diziam que o mercado iria operar contra se votassem no PT, mais as pessoas viram uma boa razão para votar no PT. É a prova de que o tipo de globalização de Washington produz maciça reação política e social contrária.

Por que o senhor diz que a eleição de Lula é importante para o mundo?

HOBSBAWM: A única restrição real ao fundamentalismo de mercado é quando se reconhece que leva a uma resistência política que não pode ser superada. Então, têm que mudar. A economia financeira internacional está muito instável e até os Estados Unidos reconhecem que deixar o Brasil ir à falência, como aconteceu na Argentina, é intolerável. Resistir ao FMI, se feito de forma apropriada, é uma política eficaz, como aconteceu com a Malásia. Mas por outro lado seria ridículo para o Brasil, e mesmo para Lula, decidir ir totalmente contra as condições impostas pelo mercados internacionais.

Por que?

HOBSBAWM: Porque um enorme perigo para qualquer governo de esquerda, em qualquer país, é que se ele for inaceitável para os mercados capitalistas internacionais pode ser desestabilizado muito rapidamente. O Brasil tem a vantagem de que, no momento, a economia internacional está tão instável que até mesmo os mercados vão hesitar em produzir uma catástrofe no país. É uma situação muito difícil e vai determinar o sucesso do governo Lula, mas ele tem vantagens.

Quais?

HOBSBAWM: Ele tem considerável apoio de um grande número de pessoas no Brasil que também se opõem ao tipo de globalização que os americanos querem. Por tradição, o desenvolvimento econômico brasileiro tem sido amplamente baseado num tipo de desenvolvimento nacional, planejado. O Brasil não é o único a fazer isso. A Coréia do Sul, por exemplo, faz. Qualquer governo que for percebido como aquele que resiste à versão americana da globalização terá apoio mais amplo e não só da esquerda.

Isso indica que o PT caminhou para o centro?

HOBSBAWM: Quando se está no governo se reconhece que há certas coisas que não podem ser feitas. E foi uma coisa boa para o PT afastar alguns militantes extremistas. Como os trabalhistas (britânicos), Lula também não teria ganho se os elementos irreais de esquerda tivessem prevalecido. Mas para o Novo Trabalhismo (de Tony Blair) foi uma tática para ganhar as eleições e não significou enfraquecer o extremo, mas abandonar qualquer política tradicional do trabalhismo. Já os brasileiros queriam uma mudança radical e sua maior vantagem é que ele foi eleito como um partido que quer grandes mudanças.

O PT deveria seguir o caminho do Partido Trabalhista?

HOBSBAWM: Não acredito que o Novo Trabalhismo seja um modelo para Lula. Um governo trabalhista precisa aprender que opera dentro de uma sociedade capitalista, mas a questão é se realmente busca seus próprios objetivos. Se há uma críti$ao presidente Fernando Henrique Cardoso não é reconhecer as limitações econômicas dos mercados internacionais. Mas sim que fez muito pouco para destruir as injustiças sociais gritantes no país sobre as quais, ele sabe, alguma coisa precisa ser feita. Espero que o governo Lula tenha mais consciência da necessidade de fazer algo sobre isso. Acho que Lula vai ser julgado mais pelo que fizer pelos pobres.

Como o senhor vê as mudanças na China e o fato de o PC chinês estar aceitando capitalistas?

HOBSBAWM: A liderança do partido parece estar em mão de tecnocratas inteligentes da geração pós-revolucionária, que querem continuar o que tem sido uma estratégia brilhantemente bem-sucedida de reforma econômica. E trouxe liberalização cultural e até mesmo política. Por outro lado, apesar das oportunidades que o país dá para a iniciativa privada, a China não está a caminho do capitalismo ou de um Estado constitucional liberal. É sua própria combinação entre público e privado, com poder mais privado do que jamais antevisto pelo socialismo tradicional. Mas seria um grande erro dizer simplesmente que a China está a caminho do capitalismo como outros países capitalistas.

Quais as diferenças?

HOBSBAWM: São diferenças históricas, culturais e não se deve esperar que essas diferenças desapareçam. Há uma mitologia andando por aí que, em algum lugar no mundo, há um sistema ideal, capitalista ou não-capitalista, que cedo ou tarde todos vão adotar. Não acredito que isso vai acontecer ou que precise acontecer.

Isso significa que cada país deve seguir o seu sistema?

HOBSBAWM: Haverá várias versões regionais, culturais e não uma única combinação de público e privado ou um único sistema institucional permanentemente satisfatório. Muitos funcionaram por algum período e depois pararam de funcionar bem.

Qual a diferença entre um mundo com a Guerra Fria e um mundo com a guerra contra o terror?

HOBSBAWM: Os governos estão perdendo controle da ordem pública em seus territórios nos últimos 30 ou 40 anos. Neste sentido, o crescimento do terrorismo e a inabilidade dos Estados para controlar o que acontece em seus territórios é um fenômeno novo no mundo. Afeta até mesmo países poderosos. É uma situação à qual os países têm que se ajustar e tratar, porque é possível que tais movimentos terroristas se tornem forças militares sérias se adquirirem armas nucleares, o que não está fora de questão.

Vivemos num mundo totalmente diferente?

HOBSBAWM: É um mundo novo e diferente, os governos estão em certos aspectos se tornando mais fracos. Pelo menos no controle dos seus territórios e na sua capacidade de mobilizar suas populações. É impensável que no século XXI Estados grandes e modernos sejam capazes de convencer seus cidadãos a irem à guerra de forma voluntária e morrer e serem mortos, como aconteceu na Primeira e Segunda guerras. Na verdade, hoje ficamos chocados quando descobrimos que pequenos grupos de pessoas estão preparados para morrer ou matar. E isso é um novo fenômeno.

Por que o senhor está tão pessimista?

HOBSBAWM: Alguém pode dizer que está otimista hoje? O que se pode dizer é que se está preocupado. Mas é claro que há esperança de que as coisas saiam da maneira certa.

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