A literatura ficou mais pobre
Mais: Um santuário das onças
Fui pego de surpresa em pleno domingo de sol, aqui nos trópicos. Morreu em Madrid, o escritor espanhol Javier Marías, aos 70 anos. Considerado um dos maiores romancistas espanhóis do nosso tempo, não sobreviveu a uma pneumonia que o deixara em coma há mais de um mês.
Há pouco menos de cinco anos, se não me falha a memória, visitei Madri, com o jornalista Napoleão Sabóia, e o acompanhei durante a entrevista que ele havia conseguido marcar, depois de inúmeras tentativas, com o escritor Javier Marías, um dos mais importantes nomes da ficção europeia contemporânea. O autor basicamente vivia sozinho em um apartamento na praça principal de Madrid.
Quando o encontramos, logo ficamos sabendo que ele não escrevia no computador, não tinha e-mail nem celular. Podia parecer pose desse espanhol nascido em 1951, que se autointitulava rei de Redonda, uma minúscula ilha antilhana habitada por alcatrazes, e que, nas fotografias que lhe tiravam, quase sempre aparecia com um cigarro aceso e politicamente incorreto seguro na mão esquerda.
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Na verdade, o apego a uma velha máquina de escrever eletrônica Olympia, modelo de luxo, era mais um traço de uma personalidade original, que se reflete numa literatura diferente de tudo o que se faz hoje.
A traição, o engano, o poder, a verdade e a mentira são temas recorrentes nos romances de Javier Marías, que tiveram uma gênese apurada em Todas as Almas. O romance foi o motivo para uma conversa na casa do escritor, em Madrid, até o cair da noite.
Com um elogio à invenção, o desprezo pela “literatura das penas” e o receio de um regresso ao primitivismo civilizacional sempre que se confunde literatura com literalidade.
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Com Veneno, sombra e adeus, Javier Marías, considerado por Roberto Bolãno o melhor romancista em língua espanhola de seu tempo, fecha seu romance monumental, equilibrando doses equivalentes de humor, suspense e reflexão.
Diz ele: a gente não deseja, mas sempre prefere que morra quem está a seu lado, numa missão ou numa batalha, numa esquadrilha aérea ou sob um bombardeio ou na trincheira.
Assim começa Veneno, sombra e adeus, terceiro e último volume de Seu rosto amanhã, o ambicioso thriller metafísico de Javier Marías que, por fim completo, se revela como uma das mais altas realizações literárias do nosso tempo.
O narrador e protagonista, Jacques ou Jaime ou Jacobo Deza, acaba conhecendo aqui os inesperados rostos dos que o rodeiam e também o dele. Descobre então que, sob o mundo mais ou menos tranquilo em que os ocidentais vivemos, sempre lateja uma necessidade de traição e violência que é inoculada em nós como um veneno.
Com seus novos e cruciais episódios em Londres, Madri e Oxford, com seu desenlace atordoante, encerra-se aqui uma história que é muito mais que uma história apaixonante, contada com a mestria de um dos melhores romancistas contemporâneos, e talvez o mais profundo e ousado.
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Continua Javier: gosto de escrever no papel. Enquanto me permitirem, vou continuar batucando em velhas máquinas e corrigindo à mão.
Para seus admiradores que, ao menos na Espanha, contavam-se em mesmo número que os detratores; com Marías era ame-o ou deixe-o. O escritor chegava ao ponto mais alto da sua trajetória, até o momento, com a publicação, em três volumes, de Seu rosto amanhã, projeto que lhe consumiu nove anos e que soma mais de 1.600 páginas impressas (haja folhas em branco, coitada da velha Olympia).
O terceiro volume, Veneno e sombra e adeus, saiu em outubro de 2007, e a tradução no Brasil saiu em 2010, pela Companhia das Letras, que publicou os dois anteriores, Febre e lança e Dança e sonho e Veneno e Sombra e Adeus.
Muita gente fala em trilogia, quando não é, explicou Marías. Uma trilogia se constitui de três romances distintos que têm certa unidade temática ou de atmosfera, mas que se podem ler separadamente e fora de ordem. Seu rosto amanhã – pontuou – é um só romance em três partes, que um dia poderá ser perfeitamente publicado num volume bastante grosso.
O tema central da obra é, numa palavra, a traição. Mas há lugar para uma infinidade de temas. Alguns deles bem atuais, como o estado de vigilância na sociedade moderna.
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A maioria de nós – continuou Javier – não tem consciência de que é observada e filmada em quase todos os lugares. Ou aceita isso como se fosse natural. A prova é que muitas pessoas mantém conversas privadíssimas aos berros no celular, estejam no meio da rua, no ônibus, no táxi ou no metrô. É como se houvesse uma mescla de despreocupação e exibicionismo. É como se não mais importasse ter segredos.
E, para mim, disse Javier, é fundamental tê-los. É fundamental que exista uma parte de nossas vidas que permaneça desconhecida para os demais. A dimensão oculta da vida é imprescindível para que a vida seja de verdade.
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Precoce, Javier Marías publicou o primeiro livro aos 19 anos, em 1971. Los dominios do lobo parodia a narrativa cinematográfica, em especial a americana clássica dos anos 1930 e 1940. Em seguida, veio Travesía del horizonte (1973), e dessa vez o alvo foram as narrativas de aventura no mar.
Na época, um grande amigo e espécie de mentor literário, o escritor Juan Benet, passou a chamá-lo de o jovem Marías , para diferenciar do pai, o filósofo Julian Marías. O epíteto, que não esconde certo tom de ironia, pegou no breu. Até antes de morrer, havia quem o chamasse assim, mesmo tendo sido eleito em 2006 para a vetusta Real Academia Espanhola (a ABL deles).
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Na esteira do sucesso, Coração tão branco foi a primeira obra de Marías a ser traduzida no Brasil, em 1995, pela Martins Fontes (recentemente relançada na coleção de bolso da Companhia das Letras).
O impacto do romance pode ser explicado a partir da primeira frase: “Eu não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não fazia muito voltara de sua viagem de lua-de-mel, entrou no banheiro, pôs-se diante do espalho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de almoço com parte da família e três convidados”.
Há o mistério e o suspense por que o suicídio? O que o gesto tem a ver com os fatos que se narram no presente? que se entrelaçam com o crescente mal-estar do narrador, que goza a lua-de-mel em Havana. Mas há sobretudo a prosa hipnótica e digressiva, e um elaborado senso de humor.
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Uma cena inesquecível e aparentemente gratuita mostra o protagonista, intérprete e tradutor de organizações internacionais, no dia em que conheceu sua futura mulher, que tem a mesma profissão.
Ambos fazem a tradução simultânea de um encontro privado entre o chefe de estado espanhol e a chefe de estado inglesa (Felipe Gonzalez e Margaret Thatcher, por supuesto, mas não nomeados).
O narrador, enfadado, resolve improvisar à revelia: Diga-me, gostam da senhora em seu país?.
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Javier Marías não esperava que o telefone tocasse ao meio-dia de quinta-feira, 10 de outubro de 2018. “Não atendo números que não conheço”, respondeu, sem esconder um ar de riso, questionado sobre a eventualidade de receber uma chamada da Academia Sueca.
Todos os anos o seu nome aparecia na lista dos favoritos ao Nobel. Naquele ano não foi excepção, mas na lista de apostas ele não estava entre os primeiros. Passaram-me a lista de apostas. São sobretudo ingleses. Já se sabe que os ingleses apostam em tudo; gente louca.
Nas cotações, Anne Carson estava em primeiro lugar, o meu nome estava lá atrás. Mas metade dos nomes não me soava a nada. Olga não sei quê, nunca ouvi falar dela... Ludmila não sei quantos... Não vejo motivo para que me deem ou não. Não é coisa que me preocupe. Não o desejo nem o espero. Seria um motivo de contentamento, mas não perco um minuto pensando nisso, vai dizendo enquanto acende e apaga cigarros, uma voz cava, raciocínio com poucas pausas, poucas hesitações.
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O telefonema não chegou e Javier Marías, o escritor espanhol mais conceituado, continuou a fazer parte da lista dos que apostam no Nobel da Literatura. Entre muitos cigarros, várias idas à cozinha, o autor de Coração Tão Branco, O Teu Rosto Amanhã ou Berta Isla continuou a dizer que gostava de se evadir para o mundo da ficção. “Os mundos de ficção têm muita força para quem escreve”, disse. sem nunca o confundir com autoficção, gênero que não apreciava, e inaugurando alguns dos seus temas recorrentes: a espionagem, a intriga acadêmica, uma reflexão sobre o tempo e o lugar.
Sem dúvida, um mote para uma conversa sobre literatura como evasão do real com vista para uma praça em tons de cobre e com o tempo contado: uma hora, que o escritor deixou estender para quase duas, até ser noite cerrada em Madrid.
Dali a umas horas soube-se que “Olga não sei quê” [a polonesa Olga Tokarczuk] era Nobel da Literatura, cuja distinção recebeu somente em 2019, junto com o austríaco Peter Handke.
DE RELANCE
Um santuário das onças
Com sorte, é possível avistar um dos mais majestosos animais da fauna brasileira – a onça-pintada – no Refúgio da Ilha Ecolodge, no Pantanal Sul.
A propriedade conta com um projeto de monitoramento dos felinos e tem 30 exemplares catalogados, vivendo livres na natureza selvagem.
– Às vezes, elas aparecem. É lindo e reforça a importância da conservação. Nós levamos isso muito a sério. Do contrário, em alguns anos, não teremos mais Pantanal – diz Ivone Copetti, uma das administradoras do Refúgio.
O recado também é relevante por mostrar um outro lado do avanço nas áreas de floresta do Brasil profundo. Há, sim, gente preocupada com o meio ambiente e a sustentabilidade.
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O Pantanal é considerado pela Unesco uma das mais importantes reservas naturais do mundo.
No coração da América do Sul, o Pantanal é a maior extensão alagável contínua do planeta, sendo que 80% de sua área está em território brasileiro e, o restante, nos Chacos do Paraguai e da Bolívia.
A exuberância da fauna e da flora brasileiras foi registrada por viajantes europeus no Brasil no século 19. À época, o inventário da nossa biodiversidade ainda estava por ser feito, o que estimulou grandes expedições.
Um dos participantes foi o alemão Johann Moritz Rugendas, que chegou ao país em 1822 e passou por diferentes regiões, deixando litografias emblemáticas.
Não à violência
Quando a selvageria se transfere das redes sociais para a vida real é porque está passando da hora de todos os protagonistas da disputa eleitoral entrarem em campo para condenar a violência e pedir mais tolerância aos seus.
O risco de confrontos antes, durante e depois da eleição está no topo das preocupações das autoridades de segurança pública encarregadas de proteger eleitores, candidatos e autoridades nas próximas semanas.
Os candidatos não podem ser responsabilizados diretamente pelos atos de aloprados que querem resolver divergências a tiros ou na ponta da faca.
Podem, no entanto, desarmar os espíritos, em vez de estimular a discórdia na guerra verbal.
Fora da rota do ódio
Como explicar tamanha barbárie como desfecho de uma simples divergência em relação aos candidatos que lideram as pesquisas de intenção de voto? Pela legitimação da violência que começa nos discursos, nos gestos e na escolha das palavras para se referir aos adversários.
No Maranhão, felizmente, não há registro de crimes contra a vida por divergências políticas, mas o acirramento dos ânimos nas redes sociais recomenda cautela.
Vale destacar que é importante o reforço policial para proteger a vida dos juízes responsáveis pelo pleito.
Na verdade, todos os magistrados estarão à disposição da Justiça Eleitoral, para serem chamados em caso de emergência.
O estrago feito por Lula
O ex-presidente Lula soltou o freio de mão e desceu lomba abaixo com uma declaração inoportuna e infeliz.
Cometeu o pecado da generalização ao comparar as manifestações de 7 de Setembro, estimuladas pelo presidente Jair Bolsonaro, a uma reunião da Ku Klux Klan.
Em um comício, na quinta-feira, Lula soltou o verbo: “Foi uma coisa muito engraçada, que no ato do Bolsonaro parecia uma reunião da Ku Klux Klan. Só faltou o capuz, porque não tinha negro, não tinha pardo, não tinha pobre, não tinha trabalhador”.
Deveria pedir desculpas, com urgência, para tentar conter o estrago.
Para escrever na pedra:
“As coisas difíceis parecem possíveis quando você pensa um pouco nelas, mas se tornam impossíveis se você pensa demais”. Do escritor espanhol Javier Marías, que morreu ontem em Madrid.
TRIVIAL VARIADO
Na tarde de ontem, Ana Lucia Albuquerque e Amaro Santana Leite cruzaram os céus do Brasil e desembarcaram em São Paulo para reverem os dois filhos dele e os três netos. Ficam por lá durante uma semana.
Cientistas políticos avaliam que a polarização entre Lula e Bolsonaro é percebida nos Estados e que os palanques regionais têm “peso relativo”. Eles podem ajudar a alavancar candidaturas presidenciais, mas os rumos dependem das dinâmicas e agendas de cada unidade da federação.
Em tempo: na prática, os benefícios e as transferências de votos não são certas, automáticas ou lineares.
Como fazem todos os anos, Lil Trinta e Jorge Cateb Neto, Déia Trinta e Luiz Campos Paes já estão de tickets marcados para irem mais uma vez participar da festa do Círio de Nazaré, em Belém.
Sábado, dia 10, foram lembrados os 92 anos de nascimento do poeta maranhense Ferreira Gullar. Domingo, dia 11, o mundo lembrou os 21 anos do atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, nos Estados Unidos.
Um homem que trabalhava muito vê outro sentado em uma cadeira, no maior descanso. Ele não resiste e diz: – Sabia que a preguiça é um dos sete pecados capitais? O homem que estava descansando abre os olhos, com toda a tranquilidade, e responde: – E a inveja é o quê?
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