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COLUNA
Rogério Moreira Lima
Engenheiro e professor, foi coordenador Nacional da CCEEE/CONFEA e vice-presidente CREA-MA (2022). É membro da Academia Maranhense de Ciência e diretor de Inovação na Associação Brasileira de
Rogério Moreira Lima

Cristo de Encantado: A Engenharia Invisível

A reportagem exibida recentemente, no domingo passado, 6 de abril de 2025, pelo programa Fantástico, da TV Globo, sobre o Cristo Protetor de Encantado (RS), deixou de prestar um reconhecimento essencial.

Rogério Moreira Lima

A reportagem exibida recentemente, no domingo passado, 6 de abril de 2025, pelo programa Fantástico, da TV Globo, sobre o Cristo Protetor de Encantado (RS), deixou de prestar um reconhecimento essencial: em nenhum momento foi mencionada a participação do engenheiro responsável pela concepção e segurança estrutural da obra. A narrativa valoriza todos os profissionais envolvidos — escultores, artistas, religiosos e lideranças comunitárias —, mas ignora justamente aquele que tem por lei a atribuição de garantir que a estrutura permaneça em pé: o Engenheiro.

Ergue-se uma estátua de 43 metros de altura, maior do que o próprio Cristo Redentor do Rio de Janeiro, e a narrativa jornalística opta por valorizar apenas os aspectos simbólicos, religiosos e comunitários, como se uma obra de tal porte pudesse simplesmente brotar da boa vontade e da fé coletiva. É preciso lembrar que, por trás de cada monumento em pé, há um profissional legalmente habilitado, que responde tecnicamente por sua estabilidade, segurança e viabilidade construtiva. E esse profissional, no caso de estruturas, é o engenheiro civil. O esquecimento não é apenas uma falha de crédito: é um sintoma de como a engenharia brasileira tem sido invisibilizada, até mesmo em feitos de alto impacto público.

Esse apagamento contrasta fortemente com o caso do Cristo Redentor, inaugurado em 1931. À época, mesmo com limitações tecnológicas e de comunicação, foi amplamente reconhecido o protagonismo técnico do engenheiro Heitor da Silva Costa, autor do projeto e coordenador da obra. Os cálculos estruturais foram confiados ao francês Albert Caquot, um dos maiores engenheiros da época. Já o escultor Paul Landowski foi o responsável pela concepção artística das partes do monumento. Ou seja, há quase um século, havia mais clareza sobre a distinção entre arte, fé e engenharia, e sobre a importância de reconhecer cada parte envolvida.

Além da omissão, é fundamental esclarecer o que representa ser responsável técnico por uma obra dessa natureza. Não se trata apenas de "acompanhar" ou "fiscalizar" a construção. O engenheiro civil precisa ter como base o domínio de conteúdos avançados de matemática e física. Para calcular com segurança os esforços que atuam sobre grandes estruturas, ele deve compreender profundamente cálculo diferencial e integral, além de Resistência dos Materiais e Análise Estrutural que permitem modelar a distribuição de cargas e deformações atuantes na estrutura em análise. Deve ainda utilizar álgebra linear e teoria de matrizes, indispensáveis na resolução de sistemas estruturais complexos que envolvem múltiplos pontos de apoio e interações entre componentes.

A análise de fenômenos dinâmicos nas estruturas exige domínio das equações diferenciais, que descrevem a resposta da estrutura a cargas variáveis, como vento, vibrações e possíveis ações sísmicas. Ressalta-se a exigência do conhecimento em mecânica dos sólidos e resistência dos materiais por serem essenciais para prever o comportamento dos elementos construtivos sob tensão, compressão, torção e flexão. Toda essa base é aplicada por meio de ferramentas computacionais avançadas, como os métodos numéricos utilizados em simulações estruturais. Entre eles, destaca-se o método dos elementos finitos (MEF), que permite avaliar o desempenho de cada parte da estrutura com elevado grau de precisão. Cabe também ao engenheiro interpretar e aplicar corretamente as normas técnicas nacionais e internacionais, que determinam critérios de segurança, materiais adequados, coeficientes de carga, parâmetros de dimensionamento e fatores de correção. Cada decisão técnica tomada deve estar respaldada por um arcabouço normativo e por um raciocínio matemático rigoroso, responsabilidade que não pode ser invisibilizada ou romantizada.

A importância do engenheiro se manifesta tanto na etapa de projeto quanto na de execução da obra. Esse duplo controle permite identificar e corrigir falhas antes que se convertam em tragédias. Durante a construção, qualquer desvio em relação ao previsto pode ser detectado pelo engenheiro, que atua em diálogo com o projetista para tomar medidas corretivas. Trata-se de uma engrenagem de responsabilidade mútua, que visa sempre à integridade da estrutura e à segurança das pessoas. A engenharia não é apenas um saber técnico: é uma prática social de prevenção de riscos e promoção da vida.

É ainda mais paradoxal que se invisibilize a engenharia num país cuja trajetória técnica é reconhecida internacionalmente por obras de enorme complexidade e relevância. A engenharia brasileira se destaca por realizações como a construção da ponte Rio-Niterói, que com seus mais de 13 quilômetros se impõe como uma das maiores do mundo sobre o mar; a monumental Usina Hidrelétrica de Itaipu, referência em geração de energia e resultado de uma complexa parceria binacional entre Brasil e Paraguai; a excelência da EMBRAER, que colocou o Brasil entre os líderes mundiais na indústria aeronáutica; a ousadia da concepção e execução de Brasília, símbolo de modernidade urbanística e estrutural; o metrô de São Paulo, construído sob terrenos desafiadores com soluções de engenharia de ponta; as plataformas de petróleo do pré-sal, projetadas para operar em ambientes hostis com alta profundidade e pressão; e o próprio Cristo Redentor, símbolo nacional concebido e erguido com técnicas inovadoras para os anos 1930, graças à sinergia entre engenheiros e artistas. Cada uma dessas obras e serviços evidenciam a capacidade da engenharia brasileira de unir ciência, tecnologia e compromisso social na construção de soluções de impacto duradouro.

Ignorar o papel do engenheiro não é apenas um descuido jornalístico. É também um desrespeito à função social da engenharia e à exigência legal de responsabilidade técnica, prevista na Lei nº 5.194/1966 e regulamentada pelo sistema CONFEA/CREA. Obras como a do Cristo Protetor de Encantado/RS não podem, e não devem, ser tratadas como fruto de inspiração divina ou esforço artesanal apenas. Elas são também — e principalmente — o resultado do trabalho técnico, científico e ético de profissionais que lidam com riscos, normas, cálculos e vidas. As mais de 500 mortes nos sinistros da boate Kiss, Mariana, Brumadinho, incêndio do CT do Flamengo e colapso da ponte JK entre o Maranhão e Tocantins demonstram que a engenharia implica em risco à coletividade quando ocorre o exercício ilegal da profissão ou má conduta profissional.

Que não se repita o erro de celebrar apenas o símbolo, esquecendo de quem o tornou possível. A fé move montanhas, mas é a engenharia que garante que elas não desabem.

Artigo elaborado em colaboração com o Eng. Civ. Mikhail Luczynski, Mestre em Engenharia Civil/Estruturas pela UFPA, professor de Engenharia Civil da UFMA

Fontes:

BRASIL. Lei nº 5.194, de 24 de dezembro de 1966. Regula o exercício das profissões de engenheiro, arquiteto e engenheiro-agrônomo.

Sistema CONFEA/CREA – Conselho Federal de Engenharia e Agronomia.

Cristo Redentor (RJ) completa sete anos como patrimônio cultural. Publicada em 30 de setembro de 2015, às 08h04, disponível em: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/3313/cristo-redentor-rj-completa-sete-anos-como-patrimonio-cultural

Fantástico| O maior Cristo do Brasil foi inaugurado em Encantado, RS, disponível em https://globoplay.globo.com/v/13494588



 



 

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