Entre versos e memórias
Litania da velha (1995), de Arlete Nogueira, e Os telhados (1999), de José Chagas, são duas obras que possuem a cidade de São Luís como cenário.
A fonte de toda a produção socioeconômica e cultural da cidade de São Luís, desde 1612, época de sua fundação, até o início do século XX, provinha dos bairros do Centro, Desterro e Praia Grande. Entretanto, com o passar do tempo, a cidade se expandiu, o que ocasionou um deslocamento comercial e cultural do Centro Histórico, para outros lugares. Outro fato que vale ser ressaltado trata-se do Projeto Reviver, implantado no final da década de 80, pelo Governo Estadual do Maranhão, cujo objetivo era
“revitalizar e recuperar casarões do Centro Histórico. No entanto, o Projeto não obtinha recursos suficientes para recuperar todo o acervo e muitos casarões continuaram sofrendo o desgaste e a ação do tempo. Mesmo assim, passados dez anos, em 1997, o Centro Histórico de São Luís recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Muitos casarões foram recuperados e transformados em repartições públicas, mas as novas tintas não conseguiram colorir todos os sobrados e nem restaurar a dignidade daquele espaço, que continuou sendo morada dos excluídos” (SILVA, 2016, p. 167).
Nesse “desenho que se forja a partir do centro histórico inúmeros traços das gentes e das pedras que lhe performam são subtraídos de um mosaico criteriosamente construído” (FERREIRA, 2004, p. 43). Nesse contexto, no livro Os telhados (1999), José Chagas pintou uma imagem da cidade de São Luís, mais especificamente do Centro Histórico da também conhecida cidade velha – separada da cidade nova pela ponte do São Francisco –, por isso, o poema tem como pano de fundo as ruínas remanescentes, do que antes era uma cidade esplendorosa, bem como retrata o lamento e desconsolo do poeta, que se encontra indignado perante a atual situação do lugar, ressaltando a insalubridade e devastação dos restos da antiga cidade. Para tanto, Chagas lança mão de diversos recursos estilísticos que dão forma à sua poética. Assim, a cidade histórica é tomada pela construção metonímica dos telhados.
Outra obra que possui a cidade de São Luís como cenário é Litania da velha (1995), que de acordo com o próprio José Chagas, pode ser compreendido como um poema no qual “Arlete humaniza, ou melhor, personaliza magistralmente a cidade em sua decrepitude, pois que, de fato, esse envelhecimento está ligado visceralmente ao destino dos que a habitam, como uma fatal força aniquiladora até de nossas esperanças” (CHAGAS, apud CORREA, 1995, p. 01). É importante destacar ainda a riqueza de significados que o título dessa obra contém, pois litania, proveniente do termo latino litaniae, trata-se de um canto de lamentação. Além disso, notamos que a velha que entoa essa cantiga estabelece uma relação orgânica com a cidade arruinada, não sendo possível, por vezes, distingui-las.
Dessa maneira, observamos as primeiras semelhanças entre os referidos textos poéticos, visto que ambos tematizam as ruínas da antiga cidade histórica de São Luís, com angústia e pesar, a partir das seguintes analogias: a cidade representada metonimicamente pelos telhados e a sua aproximação com a figura da velha, retratando o espaço urbano em toda a sua fragilidade e restos deixados pelo tempo, tal como demonstram os versos a seguir: “trezentos anos sobre uma cidade / pesam trezentas chuvas incessantes / [...] trezentos anos deitam-se nas calhas / onde morreram naturezas falhas / e rolam cursos de afogados rios” (CHAGAS,1999, p.) e “A velha projeta a agonia no ocaso do coração combalido. / A dor centenária aflora na multidão dos tristes fantasmas. / [...] A antiga cidade é uma ilha que se desfaz em salitre.” (CRUZ, 1995, p. 21).
A partir dos recortes acima, podemos notar que essas obras carregam consigo semelhanças tanto no que diz respeito aos cenários descritos – ambientes sujos e sombrios, arruinados pela ferocidade do tempo, que denotam a condição precária em que vivem as pessoas que ali trabalham/transitam – bem como no que se refere à escolha vocabular, como, por exemplo, a alusão à idade centenária da cidade, para enfatizar o estado de abandono em se encontravam/encontram as ruas e casarões do Centro Histórico de São Luís, nas duas obras analisadas. O segundo aspecto de similitude encontrado nos poemas de José Chagas e Arlete Nogueira refere-se à recorrente alusão ao tempo, que se projeta em ternas memórias de um passado, que não existe mais, e em desesperança quanto ao futuro da cidade-velha, conforme observamos nos versos a seguir:
“meus pés e sua humildade descalça
e o seu conformar-se com o último degrau
das escadas que me põem à janela
à janela que dá para as tuas mil dimensões
para teus horizontes de revividos passados” (CHAGAS, 1999, p. 26);
“A rua, de novo, é caminho que a leva para a passagem das horas.
Os anos na corcunda lhe duram e doem como pesados fardos.
A atenção, entre as pedras, ignora a manhã que cresce sem ela.
A velha segue contrita o percurso que perfaz com fiel devoção” (CRUZ, 1995, p. 12).
De acordo com os trechos supracitados, notamos outra semelhança entre os livros: a devoção pelo espaço, tornando o solo sagrado, como é possível observar através das expressões “humildade descalça” e “fiel devoção”, respectivamente, mas também, a saudade do passado, que a todo tempo é relembrado, em toda a sua glória e, sobretudo, é enfatizado, nos dois poemas, que a situação atual da cidade-velha não passa de um pagamento do alto preço do progresso, tal como fica evidente em “conformar-se com o último degrau” e “manhã que cresce sem ela”, uma vez que tanto último degrau, quanto a manhã que cresce independente a presença da velha, denotam o conformismo com a degradação física e social – resultando em poluição, violência e marginalidade – ocasionada pelo progresso.
A terceira similaridade identificada nas obras Os telhados (1999) e Litania da velha (1995) concerne ao tom de desalento dos poetas frente ao abandono da cidade antiga, através da repetição de sentimentos decadentes, tais como solidão, silêncio, tristeza e dor, como demonstram as passagens a seguir:
“a sombra existe
depois da existência
mas (só) eu olho triste
sua persistência” (CHAGAS, 1999, p. 15);
“O tempo consome o silêncio e mastiga vagaroso a feroz injustiça.
O campo se perde embebido em jenipapos para a manhã sufocada.
Os bois da infância ruminam sua paciência e espreitam essa audácia.
- O tempo dói na ferida aberta da recordação” (CRUZ, 1995, p. 08).
Entretanto, é evidente, nos excertos acima, que esses sentimentos decadentes são experimentados por diferentes indivíduos. Enquanto no primeiro trecho temos o sofrimento e solidão do poeta frente à destruição do seu tão estimado Centro Histórico, no segundo temos a voz personificada da própria cidade-velha, que vaga triste, em silêncio, abandonada pela população e entregue aos seus devaneios e memórias saudosas. No entanto, as duas obras, ao seu modo, trazem à tona tais sentimentos, a fim de retratar a dor sentida pelo próprio espaço, personificado em uma velha, e pelos seus habitantes remanescentes, excluídos socialmente. O quarto aspecto de similaridade encontrado nos poemas de José Chagas e Arlete Nogueira refere-se à sujeira que inunda a antiga cidade, conforme observamos nos versos a seguir:
“aqui se avalia a miséria do homem.
um rato é maior em seu teto. o que
nele rói, rói a si mesmo, e o pó
de seus dentes condiciona o mundo” (CHAGAS, 1999, p. 43);
“As casas, à sua passagem, são cáries de dentes chorando o seu flúor.
Os buracos se espalham no chão como lagos avulsos de águas toldadas.
A criança brinca no esgoto que escoa também o seu sonho pequeno.
O cachorro, perdido, caminha o desvio de seu abandono” (CRUZ, 1995, p. 10).
De acordo com os trechos supracitados, notamos outra semelhança entre os textos, a presença de elementos que denotam a poluição do espaço urbano, tais como esgoto e ratos, que ocasionam a ruína da cidade representada pela palavra pó. Enquanto, o primeiro conjunto de versos traz a comparação do homem com o rato, destacando a miséria do lugar, bem como o desvio de caráter humano que destrói e torna tudo em pó que “condiciona o mundo”, isto é, o faz girar a roda do progresso; o segundo, enfatiza a decrepitude das ruas e moradias, inundadas pelo esgoto e soterradas pelos buracos, mas também a analogia da criança com um cachorro perdido, notabilizando a falta de perspectiva do(a) menino(a), que possui um “sonho pequeno”, o que pode denotar a desesperança frente ao futuro, ou, até mesmo, a curta expectativa de vida em uma situação tão miserável. Enfim, ressaltamos as diferenças encontradas nos poemas de Chagas e Nogueira, conforme observamos nos fragmentos a seguir:
“os caminhos do tempo aqui se anulam. os
dias se curvam. e o que é dia é noite que
não tarda. e o que é noite desliza fácil
numa aurora em lâmina. cai” (CHAGAS, 1999, p. 18);
“O braço se estende implorando a moeda de pouca valia.
As mãos tateantes recebem a esmola atirada com desprezo.
A precisão avalia e guarda com zelo a oferenda do dia.
O bolso da saia é o saco que abriga a redenção do passeio.
A arrogância dos homens espreita e apressa a gentil despedida.
A piedade é injúria que a velha acata com a gratidão de quem deve” (CRUZ, 1995, p. 15).
De acordo com Ferreira (2004, p. 44), as “lembranças são, portanto, construídas a partir de uma superposição de temporalidades; presente e passado se entrelaçam na memória”. Desse modo, se por um lado, Os telhados (1999) parte de um lamento do poeta, que encontra-se perdido em memórias e reflexões, preso nas areias do passado, imerso em saudades infindas, conforme podemos observar nos versos “viajo um regresso / de nunca chegar” (CHAGAS, 1999, p. 36), pois segundo o eu-poético o tempo parou, por isso, ele está completamente desamparado no silêncio das ruínas. Por outro, em Litania da velha (1995), Arlete Nogueira, com seu olhar cinematográfico, põe em evidência, como uma forma de denúncia, as diversas mazelas sociais – tais como a mendicância, a miséria, a insalubridade e os mais numerosos perigos –, que os habitantes remanescentes das ruínas encaram dia após dia, e, por fim, declara a morte da cidade-velha.
Ao longo de nossas análises, observamos que apesar de se tratarem de dois poetas, com olhares, memórias e leituras únicas sobre o espaço urbano, essas obras carregam consigo semelhanças tanto no que diz respeito aos cenários descritos – ambientes sujos e sombrios, arruinados pela ferocidade do tempo, que denotam a condição precária em que vivem as pessoas que ali trabalham/transitam – bem como no que se refere à escolha vocabular, como, por exemplo, a alusão à idade centenária da cidade, para enfatizar o estado de abandono, decrepitude e descaso em se encontravam/encontram as ruas de cantaria e os casarões da cidade-velha, nas duas obras analisadas.
Portanto, podemos apontar, à guisa de uma prévia conclusão, que essas obras resgatam importantes memórias da riqueza cultural e patrimonial presente no Centro Histórico de São Luís, mas também reflexões sobre o atual estado de agonia e abandono, no qual a nossa cidade se encontra, ressaltando as ruínas e a situação miserável de seus moradores remanescentes, que mendigam a esperança do amanhã e esperam, conformados, o destino já entoado na cantiga de Arlete: a queda/ morte da Velha cidade. Entretanto, é importante enfatizar que “a leitura, por si só, não resolve os problemas sociais e/ou individuais, mas ter opções, compreender as situações é menos amargo que ser levado, sem noção do que se passa à sua volta” (YUNES, 2009, p. 58), à vista disso, a leitura dos poemas Os telhados (1999), de José Chagas, e Litania da velha (1995), de Arlete Nogueira, se impõe como fundamental, pois traz um despertamento aos leitores.
REFERÊNCIAS:
CHAGAS, José. Os telhados. São Luís: Editora AML, 1999.
CORREA, Dinacy Mendonça (orientadora); CRUZ, Maria da Graça S N da. (orientanda). Litania da velha – uma viagem de leitura com Arlete Nogueira. Monografia TCC de Letras. São Luís: EDUEMA, 1998.
CRUZ, Arlete Nogueira da. Litania da velha. São Paulo: Digital Gráfica, 1995.
FERREIRA, Márcia Milena Galdez. A litania da velha na nova/velha São Luís. In: Caderno Pós Ciências Sociais. São Luís, v.1, n.1, jan. / jul. 2004.
SILVA, Jeanne Sousa da. Litania da Velha, de Arlete Nogueira: uma cantiga de invocação ao leitor. In: CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. MELO, Bárbara Olímpia Ramos de. SOUSA, Raimundo Isídio de. (Orgs.). Literatura, Contemporaneidade e Ensino. 1ed. São Paulo: Editora Max Limonad, 2016.
YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009.
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