(Divulgação)
COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Os azulejos

O poeta e cronista José Chagas nasceu no Estado da Paraíba, contudo, foi radicado no Maranhão desde a juventude.

Gabriela Lages Veloso

Atualizada em 30/11/2023 às 15h37

No que concerne a Literatura Maranhense – cujo prestígio transcende as barreiras do tempo e espaço – sentimos “pesar, ao constatar a triste verdade de que estamos perdendo a memória das nossas mais caras tradições; de que desconhecemos o nosso cânone literário, no qual figuram grandes representantes das letras nacionais” (CORRÊA, 2014, p.11), tais como Maria Firmina dos Reis, Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, bem como José Chagas – autor cuja obra poética será contemplada no presente ensaio.

O poeta e cronista José Chagas nasceu no Estado da Paraíba, contudo, foi radicado no Maranhão desde a juventude. Ele ocupou a cadeira 28 da Academia Maranhense de Letras. A poesia de Chagas transverte supostas trivialidades em versos com grande vigor poético, na medida em que são permeados de metáforas, que vão além do mero formalismo, e atingem o traçado do conteúdo, que é desenvolvido no decorrer das páginas de seus livros. No que se refere às temáticas de seus versos, Chagas escreve sobre o tempo, a memória, a infância, a cidade que lhe adotou como filho, mas também sobre as mazelas sociais que assolam essa cidade.

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

Dentre as suas principais obras destaca-se Os azulejos do tempo (1999), livro no qual o poeta elege a Cidade Histórica de São Luís como cenário de seus versos. A cidade passa a ter o ambíguo papel de cenário de belas memórias e palco de diversas mazelas sociais. O caminho enveredado pelo poeta difere do imaginário da literatura brasileira contemporânea – que se orienta pelos labirintos da metrópole moderna –, uma vez que José Chagas traz consigo uma aversão à Modernidade, muito embora esteja inserido nela, e, por isso, temos a hipótese de que trata-se de um Antimoderno (COMPAGNON, 2011).

A fonte de toda a produção socioeconômica e cultural da cidade de São Luís, desde 1612, época de sua fundação, até o início do século XX, provinha dos bairros do Centro, Desterro e Praia Grande. Entretanto, com o passar do tempo, a cidade se expandiu, o que ocasionou um deslocamento comercial e cultural do Centro Histórico, para outros lugares. Outro fato que vale ser ressaltado trata-se do Projeto Reviver, implantado no final da década de 80, pelo Governo Estadual do Maranhão, cujo objetivo era

revitalizar e recuperar casarões do Centro Histórico. No entanto, o Projeto não obtinha recursos suficientes para recuperar todo o acervo e muitos casarões continuaram sofrendo o desgaste e a ação do tempo. Mesmo assim, passados dez anos, em 1997, o Centro Histórico de São Luís recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Muitos casarões foram recuperados e transformados em repartições públicas, mas as novas tintas não conseguiram colorir todos os sobrados e nem restaurar a dignidade daquele espaço, que continuou sendo morada dos excluídos (SILVA, 2016, p. 167).

Nesse contexto, Os azulejos do tempoPatrimônio da humana idade (1999), de José Chagas, é um livro composto por 241 poemas com títulos diferenciados, que por sua vez, são subdivididos em 10 partes, sendo cada uma delas uma reunião de temáticas. Por exemplo, na primeira parte do livro, intitulada “O império da ruínas”, o poeta reuniu 15 poemas, que evidenciam uma cidade decadente, que apresenta espaços públicos desgastados, não somente pela ação do tempo, mas também pela negligência das autoridades. 

Dessa forma, ao longo do referido livro, encontramos um minucioso retrato do Centro Histórico de São Luís, que descreve desde a estrutura física deteriorada, formada por mirantes, sobrados, azulejos partidos, ladeiras, ruas de cantaria, etc., até o folclore da cidade velha, imersa em lendas, mitos, personagens e histórias. Nesse sentido, em sua tese, o professor e poeta maranhense José Ribamar Neres Costa afirma que:

Saindo dos mirantes para pisar em terra firme, no livro Os Azulejos do Tempo – Patrimônio da humana idade, escrito logo após São Luís ser reconhecida como patrimônio da humanidade, o poeta faz um périplo pelas lendas, histórias, personagens, mitos e folclore da cidade como forma de eternizar passagens e paisagens que fazem parte do passado, permanecem no presente, mas que podem perder-se no futuro por falta de quem lhe guarde a memória. Mesmo assim, é possível perceber o tom crítico que permeia o livro (COSTA, 2020, p. 85).

Assim, Os azulejos do tempo (1999) apresenta a descrição da cidade vista por um habitante de São Luís, que evidencia e conhece todos os becos, ladeiras, sobrados, mitos e lendas, mas que por se tratar de um “habitante estrangeiro”, alguém que está inserido no lugar, mas não pertence propriamente a ele, tem uma visão mais distanciada, e, consequentemente mais ampla, e, por isso, observa o que todos ignoram: a cidade rica em belas paisagens e memórias está ruindo, e o poder público, bem como a população em geral, precisam agir para mudar essa situação degradante.

Vale ressaltar, que apesar de ser mais conhecido pelo título Os azulejos do tempo, o livro também possui um interessante subtítulo, Patrimônio da humana idade, que evidencia a ação do tempo sobre a cidade histórica, tal como a idade humana, cronológica e biológica, demarcada por nascimento, vida e morte. Nesse sentido, a cidade que estava recebendo o título de Patrimônio da Humanidade, não passaria de restos mortais, migalhas do que outrora era, de fato, a rica e bela São Luís, por isso o eu-lírico revoltado com essa situação, ironiza:

Patrimônio de quem? De ti, de mim?

Patrimônio de toda humanidade?

Herança de barata, de cupim?

[...] Patrimônio de sol, de um sol mirim,

em praias sujas onde ninguém nade?

Pois assim tudo é, por ser assim,

salve-se ao menos nossa humana idade. (CHAGAS, 1999, p. 17) 

Nos versos acima, é perceptível o tom de denúncia às condições insalubres e precárias que o “Patrimônio da humanidade” estava/está sofrendo – poluição e decadência dos espaços públicos –, mas que todos negligenciam e se conformam “Pois assim tudo é, por ser assim”. Além disso, faz-se necessário mencionar um outro importante elemento constituinte de todos os poemas, que compõem o livro em questão: a musicalidade, que é utilizada a tal ponto, que o eu-lírico chega a se autodenominar como um “violeiro sem viola” nos seguintes versos: “Eu sou um violeiro sem viola, / não sou poeta como os outros são, / mas o meu pobre canto me consola, / porquanto eu não exijo muito, não, / e também vejo que qualquer esmola / serve ao que vai pedir sem ambição.” (CHAGAS, 1999, p. 13), e, assim, Chagas inicia o seu canto de lamento, pedindo “sem ambição” a atenção de todos para o seu pedido: salvem a cidade histórica e suas riquezas.

Os azulejos do tempo – Patrimônio da humana idade (1999) é caracterizado também pela ampla presença de arquétipos antimodernos, mais especificamente por: Pecado Original, Sublime, Vituperação e Pessimismo. Dessa maneira, foram encontradas diversas similaridades entre a teoria dos Antimodernos, de Compagnon (2011), e o referido livro de José Chagas, dentre elas destacam-se: a linguagem irônica, a decadência, o saudosismo e um forte anseio pelo fim do progresso, que, paulatinamente, está destruindo a cidade histórica e suas memórias.

Se por um lado, o Pecado original é um traço antimoderno que considera que todos pecaram, desde o primeiro ser humano (Adão), até os dias atuais – assim, o pecado seria hereditário, e, por isso, pagaríamos pelos erros dos nossos antepassados –, por outro, a Vituperação é um lamento, clamor, reclamação, profecia, ou, até mesmo, um sermão. Nesse contexto, podemos citar o poema A lamúria do vento, que se encontra na segunda parte do livro Os azulejos do tempo (1999), intitulada “O aprendiz da cidade”, que nos diz assim:

Tu és feita de tempo, ó urbe em fúria,

e só o tempo guarda o teu passado,

só o tempo a volver talvez ature a

tanto sentimento descuidado,

tanta desolação, tanta penúria

por sobre tudo quanto foi herdado;

tempo que se rebela ante essa incúria

que deixou teu acervo abandonado,

quando só um fiel chão de luxúria

perseverou, por um tempo, esse legado,

e pouco importará que alguém censure a

ação dessa virtude no pecado,

que o vento se encarrega da lamúria

de um povo descontente e desolado. (CHAGAS, 1999, p. 55).

O poema supracitado carrega consigo o arquétipos antimodernos, tais como a Vituperação que pode ser observada desde o título (A lamúria do vento), uma vez que apresenta um lamento, clamor, por conta da situação deplorável na qual a cidade velha e seus habitantes remanescentes encontram-se – a única herança que restou foram as ruínas e a desolação; e o Pecado Original apresentado através da alusão a heranças negativas (penúria, escombros e lamentos) e à própria ideia de pecado e abandono. 

Por fim, no decorrer de todo o livro Os azulejos do tempo (1999), ressaltamos a presença dos traços antimodernos Pessimismo (energia do desespero, sentimento coletivo, que luta ativamente contra o progresso e seu alto preço) e Sublime (anseio pelo sagrado, sobrenatural e transcendental), tal como podemos notar nos seguintes versos: “As vezes São Luís é e não é. / É – ao ter sido, mas não é – ao ser. / Fala-se mais na que não está de pé / que na que se envaidece em seu crescer, / [...] A que é – por ter sido – ergueu-se em fé. / Nela se pode crer até sem ver.” (CHAGAS, 1999, p. 19). Dessa maneira, o eu-lírico delimita a existência de duas cidades dentro de uma só: a cidade velha (Centro Histórico), que segundo o poeta seria a autêntica São Luís, fundamentada na fé, mas que infelizmente está sendo destruída; e a cidade nova, que se inicia depois da ponte do São Francisco, considerada como um lugar de vaidade e disseminação do progresso, que está arruinando o coração ludovicense.

REFERÊNCIAS:

CHAGAS, José. Os azulejos do tempo – Patrimônio da humana idade. São Luís: Editora AML, 1999.

COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

CORRÊA, Dinacy. Da Literatura Maranhense: o romance do Século XX. São Luís -MA., EDUEMA, 2015.

COSTA, José Ribamar Neres. Ambiente e sustentabilidade na poética de José Chagas. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional) – Universidade Anhanguera Uniderp. Campo Grande, MS, p. 111, 2020.

SILVA, Jeanne de Sousa da. Litania da Velha de Arlete Nogueira: uma cantiga de invocação ao leitor. In: CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. MELO, Bárbara Olímpia Ramos de. SOUSA, Raimundo Isídio de (Organizadores). Literatura, contemporaneidade e ensino. São Paulo: Editora Max Limonad, 2016.



 

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