COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Dom de ser farol

Tudo isso ajuda, mas, quando falamos da vida, referência é muito mais do que um sinal prático.

Kécio Rabelo

Atualizada em 29/08/2025 às 08h43

Na dúvida, ou no medo de não encontrar o destino certo, pedimos uma referência.
Uma rua, uma esquina, uma cor de muro, um detalhe que oriente.

Mas o que é, afinal, uma referência?

Pode ser uma placa de trânsito que nos mostra a direção.
Um manual de instrução que ensina o passo a passo para não nos perdermos.
Ou até mesmo um simples tutorial na internet, que nos socorre diante de um objeto novo.

Tudo isso ajuda, mas, quando falamos da vida, referência é muito mais do que um sinal prático.

Referências são pessoas.
São sinais de vida.
São bússolas humanas que, com seus gestos, nos ajudam a atravessar desertos, mares e noites de incerteza.

Talvez seja o professor que, mais do que números na lousa, nos ensinou a pensar criticamente e a enxergar o mundo de outro jeito.
Talvez seja o avô, sentado na calçada ao entardecer, contando histórias que guardamos na memória.
Talvez seja a mãe que, com apenas um olhar, nos corrige, consola e ama sem precisar de palavras.
Ou o amigo que não vemos todos os dias, mas que, no instante em que precisamos, é o primeiro contato que procuramos na agenda do celular.

Referências são faróis.

Faróis não caminham conosco.
Não dão passos por nós.
Mas iluminam a estrada.

Eles não gritam, não empurram, não nos obrigam.
Simplesmente brilham.
Apontam o perigo da curva.
Mostram que seguir adiante vale a pena, apesar dos riscos; e que, além da escuridão, existe terra firme.

Às vezes nos frustram, porque não correspondem às nossas expectativas.
Não dizem o que gostaríamos de ouvir.
Não fazem como imaginávamos.
Mas é aí que revelam sua grandeza: não existem para agradar, mas para guiar.

A humanidade sempre precisou desses sinais, dessas referências.
A história tem os seus.
Em certos momentos críticos, surgiram homens e mulheres que pareciam nascer para uma missão: impedir que se apagasse a teimosa chama da esperança.

Dom Helder Câmara foi um desses faróis.

Um homem franzino.
De voz suave.
Mas de uma coragem que atravessou a noite mais densa da ditadura.

Arcebispo de Olinda e Recife, ousou sonhar com justiça social quando sonhar já era crime.
Proclamou um mundo sem senhores e sem escravos — um mundo de irmãos.

Sua “pedagogia da esperança” não cabia nos corredores estreitos do regime militar.
E tampouco em certos púlpitos cristãos, onde a fé já havia se separado da dor humana, esquecendo o Evangelho da proximidade e da compaixão.

Por isso, foi silenciado.
Censurado.
Condenado ao silêncio dentro do seu próprio país.

Mas um farol não se apaga só porque alguém deseja navegar no escuro.
Sua luz atravessa límpida, sem pedir licença.
E a claridade de Dom Helder atravessou oceanos, ecoando em universidades, parlamentos e praças da Europa e da América.

Um episódio basta para compreendê-lo.
Nos anos 1970, em Paris, falou do Brasil:
dos pobres esmagados pela miséria,
dos desaparecidos políticos,
da urgência da justiça.

Foi aplaudido de pé por uma multidão emocionada.
E, ainda assim, surpreendeu a todos:

— “Não me aplaudam. Aplaudam o povo brasileiro que sofre e resiste. Eu sou apenas uma voz que ecoa a deles.”

Aí está a missão do farol: não chama os olhares para si, mas ilumina os que estavam invisíveis na escuridão.

Hoje, quase três décadas após sua morte, sua ausência ainda pesa.
Vivemos num tempo de vozes barulhentas, mas de poucas vozes firmes.

Confundimos celebridade com autoridade.
Fama com sabedoria.
E deixamos que “influencers” se tornem modelos de vida — quando muitas vezes não passam de reflexos vazios.

Na pressa de acompanhar tudo, esquecemos quem somos.
E, quando esquecemos quem somos, viramos cópias frágeis, sem DNA, sem identidade.
Não é à toa que tantos se sentem à deriva.

Lembrar Dom Helder não é apenas reverenciar um homem da Igreja ou um “revolucionário social”.
É admitir que, sem referências sólidas, a sociedade perde o norte.
É reconhecer que precisamos de faróis que não apontem para a própria glória, mas para o essencial:
a dignidade da vida,
a justiça entre os homens,
a paz como horizonte.

E aqui fica a pergunta inevitável:
Quem são os faróis de hoje?
E, mais ainda: temos tido coragem de ser presença na vida de alguém?

Ser farol não é tarefa de santos ou heróis.
Pode ser tão simples quanto segurar a mão de quem sofre.
Ouvir sem julgar.
Dividir o pão que temos — e às vezes sobra.
É denunciar uma injustiça quando é mais fácil se calar.

Ser farol é ser presença.
Não para resolver tudo, mas para impedir que o outro caminhe na escuridão completa.

O mundo não sobrevive só de grandes refletores.
Ele continua de pé graças às pequenas chamas inquietas que se recusam a se apagar.

A vida de Dom Helder pode nos inspirar.
Soa como uma proposta na contramão: viver sem buscar aplausos, sem esperar homenagens, sem desejar recompensas.
Mas experimentar uma liberdade que não tem preço.
Que se revela na força do desapego, no desprendimento das seguranças pessoais, para a plena realização da vocação humana: servir e ser presença.

É acender a chama no meio da noite.
Não para brilhar sozinho,
mas para que outros não errem a estrada.

E se um dia a indiferença nos vencer,
se a dor do outro já não nos comover,
se a fome não mais nos constranger,
então teremos perdido o farol.

E, quando se perde o farol, não é apenas a viagem que se torna perigosa.
É a vida inteira que perde o rumo.


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