Homenagens a São Pedro e São Marçal reinventadas pela pandemia
Nos dias 29 e 30 deste mês, duas fortes representações da união entre religião e cultura serão registradas; o desafio será transformar a dor de famílias enlutadas pela Covid-19 em força e fé para seguir em frente
São Luís - Além de interferir no cotidiano, nos costumes, hábitos, economia e em outros fatores, a pandemia do coronavírus influenciou nas tradições populares, modificando atos e altrando a relação entre o que se considera sagrado. Um sincretismo visto na essência nas manifestações culturais, especificamente do período junino, em que a necessidade de junção social contrastou e criou uma incompatibilidade com os novos tempos de distanciamento entre as pessoas.
Por isso, desde o ano passado, os líderes das diferentes representações deste segmento fizeram concessões e apelaram para todos os "santos" e para a compreensão dos seguidores, no sentido de manter a essência da festa, ou seja, a batida das matracas e dos tambores, ainda que sem proximidade e o calor humano tão característicos de uma festa única maranhense, para o Brasil e para o mundo.
Nos dias 29 e 30 deste mês, duas fortes representações da união entre religião e cultura serão registradas (menções a São Pedro e São Marçal) e o desafio será, assim como ocorreu em 2020, transformar a dor de famílias enlutadas pela Covid-19 em força e fé para seguir em frente e agradecer aos santos homenageados.
Na terça-feira, o homenageado é São Pedro, e no dia 30 será a vez de São Marçal. Dois entes lembrados simbolicamente, em alusão à cultura, como os personagens que "encerram a festa junina" e cujas datas são memorizadas pela marca do Encontro de Bois na Igreja de São Pedro, na Madre Deus e pela congregação de ritmos na avenida de nome do santo citado no Bairro João Paulo.
Devido ao decreto estadual, em vigência até o fechamento desta edição, ambas as festas não serão novamente realizadas. Nesta reportagem, O Estado contará parte da história das tradições, fará alusão à igreja de São Pedro e ouvirá membros da cultura e especialistas que abordarão a essência das festas e, em consequência, falarão sobre este momento dos costumes do povo sem a vivência e efervescência naturais devido à pandemia.
Entre o sentimento de fé pelo pleno restabelecimento dos ritos, alguns exemplos de crença considerada “segura” são vistos na cidade.
Dois anos sem o encontro de São Pedro
Em 2021, o Encontro de Bois no largo de São Pedro, cujo evento marca a espontaneidade organizada de um ato que, em sua origem, revela a crença de uma gente que reverencia o santo e recebe, como benção, o boi para brincar durante o período junino, não acontecerá. Na lembrança de quem viveu outros tempos da tradição, a convicção de que, em 2022, a normalidade prevalecerá.
A festa cristã tem como selo de surgimento as décadas de 1930 e 1940. Neste período, defendem alguns historiadores e pesquisadores que, às margens da antiga Praia da Madre Deus, pescadores e outros cidadãos bradavam ladainhas e, quando a maré enchia, percorriam trecho pelas águas em respeito e agradecimento ao padroeiro dos pescadores.
Ainda na década de 1930, no antigo ponto de encontro dos pescadores – onde atualmente funciona a sede do conhecido Boi da Madre Deus –, homens em geral (provavelmente pedindo saúde e fartura na próxima pescaria) faziam ladainhas a São Pedro. Eram várias horas no interior das instalações, ainda às margens da “praia”, para pedir bênçãos ao santo. Depois da reza, vinha a pescaria.
Há uma tese vigente, contada por O Estado, em 2019, que um dos primeiros grupos de bumba meu boi a comparecer na capela simples, feita para São Pedro (construída apenas de palha em sua origem antes da década de 1950, quando fora feita de alvenaria em iniciativa empresarial à época), às margens da Praia da Madre Deus, foi o Boi de Iguaiba.
No entanto, a tese mais concreta – com base em relatos de pessoas antigas, já que não há documentos comprobatórios que referendam uma ou outra proposta de origem histórica, foi que alguns contatos de pessoas com antigos moradores da Madre Deus e estivadores vindos da região de Guimarães da Baixada e que por ali na “madre divina” se estabeleceram facilitaram o deslocamento das primeiras manifestações.
Segundo Herbert Santos, pesquisador da história cultural maranhense, grupos como o Boi do Matadouro (que virou o Boi de Leonardo), de Laurentino (da Fé em Deus) e do Mizico (da Vila Passos) foram os precursores da tradição de buscar na capela a proteção divina. “Esses grupos foram os primeiros a destinar, de forma clara, as homenagens para São Pedro, que se tem informações. Com a pausa específica na história, posteriormente, os grupos voltaram com força para a tradição até essa paralisação devido à pandemia”, afirmou.
O pesquisador valida sua proposta de origem do costume de reunião na Igreja de São Pedro a partir de relatos de familiares e pessoas que viveram este período.
Sem procissão, sem missas...
Atualmente, cientistas sociais e outros profissionais que estudam a festa entendem que, por ser um ato descrito como espontâneo, não há uma datação específica de quando a tradição começou. Entende o pesquisador Herbert Santos, questionado acerca de algum período – considerando a origem específica nas décadas de 1930 – em que o encontro de São Pedro não ocorreu entre os anos de 1939 e 1945 – devido à participação nacional na Segunda Guerra Mundial.
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Após este período, o ato de ida até a igreja de São Pedro, na Madre Deus, voltou a ser feito com frequência. Em paralelo, pela referência à comunidade pesqueira, o São Pedro – em imagem – percorria via marítima de procissão. Com a inauguração, em meados da década de 1970, da Barragem do Bacanga, o itinerário da procissão marítima (que antes saía da Praia da Madre Deus) passou a ter como ponto de partida a maré alta do Jenipapeiro, no antigo cais e que atualmente é administrado pela Marinha do Brasil.
Devido à pandemia, a procissão não ocorrerá em 2021, tal qual não ocorreu em 2020.
Programação atual de São Pedro
Sem a programação na Igreja de São Pedro, a própria comunidade local organiza as homenagens em menção ao santo. Os eventos, de acordo com a organização, devem ocorrer na Casa Barrica, situada na avenida Rui Barbosa, na Madre Deus. Segundo os responsáveis, no domingo (27), segunda-feira (28) e terça-feira (29), ocorrerão missas sendo que, na terça-feira, estão previstas missas nos seguintes horários: 7h, 10h e 16h.
Às 16h, de acordo com a comunidade que organiza os atos, haverá missa solene com o pároco Manoel Júnior, da Paróquia de São José e São Pantaleão. Ainda de acordo com os organizadores, as atividades na Casa Barrica terão limitação de público, distanciamento de cadeiras, obrigatoriedade para uso de máscaras e aplicação de álcool em gel, além de apresentação de comprovante de vacinação (pelo menos em primeira dose).
Após a agenda solene, ainda na terça-feira (29), está prevista carreata com a imagem do santo, com saída da sede do Barrica, com roteiro previsto pela avenida Senador Vitorino Freire, passando pela Rua de São Pantaleão, pela Igreja de São João, no Centro, e pela avenida Beira-Mar até retornar ao ponto de saída.
Para Regina Soeiro, responsável pela construção da agenda, as adaptações nas homenagens primam pela segurança dos fiéis. “A meta é dar mais segurança sanitária para as pessoas e, ao mesmo tempo, ter a homenagem e não deixar passar a data”, disse.
A festa a São Marçal que não ocorrerá
O evento que teria surgido a partir da proibição de grupos de bumba boi de seguirem para a área central da cidade, sob pretexto de segurança e tranquilidade, também não ocorrerá em 2021. O Encontro de Bois do João Paulo, em alusão à São Marçal – cuja força rendeu inclusive a mudança da via anteriormente chamada de Avenida João Pessoa, por questões sanitárias, não será realizado.
Em 2020, o Boi de Maracanã, para não deixar passar a data, realizou passagem pela via como marca da tradição. A ausência da festa entristece aqueles que, porventura, fizeram a força do evento. “Realmente, a gente sabe que é necessário, mas não ver mais aquela força no João Paulo não é algo que a gente quer mais vivenciar”, disse Paulo de Tarso, que participou por anos da organização do evento.
Enquanto a festa não ocorre, pesquisadores se debruçam acerca de foco na origem precisa do costume. Contam os mais antigos, referendados por nomes como Humberto de Maracanã e outros, que como a polícia não permitia que os brincantes passassem pelo antigo “Caminho Grande”, onde está o João Paulo, o local se tornou – por resistência – ponto de encontro dos grupos.
Outra versão é que a feira do bairro – por influência dos vendedores da região e originários de outros municípios da Grande Ilha, como São José de Ribamar e Paço do Lumiar, estimulou a presença na via de grupos específicos desta região. Batalhões do Sítio do Apicum, o Boi do Lugar dos Índios, do povoado de São José dos Índios, em São José de Ribamar e o Boi da Maioba se reuniram no João Paulo sob o pedido de um homem citado como José Pacífico de Moraes, um comerciante, apreciador da cultura popular. Desde então, a tradição não parou mais.
Com o passar dos anos, a meta de reunir grupos nesta via tornou-se comum, excetuando-se os anos de 2020 e, claro, o ano atual.
SAIBA MAIS
O Governo do Maranhão, sob a responsabilidade à época da ex-governadora, Roseana Sarney, determinou a reforma do largo de São Pedro e construção da igreja em alusão ao santo. O projeto foi pensado, na ocasião, pelos departamentos de infraestrutura e apoiados pelo setor de cultura. Antes no nível do terreno, a igreja passou a funcionar no alto do espaço do largo, com cobertura em formato de chapéu típico dos grupos de bumba boi. A igreja de São Pedro passa por nova reforma, cuja entrega está prevista para ocorrer até o fim deste ano. No atual serviço, serão trocados o calçamento externo em volta da construção religiosa, além de piso e pintura interna. A cobertura em formato de chapéu também deve ser reformada. A capela foi reformada em outras ocasiões, duas delas pela Prefeitura de São Luís, em 1973 e 1995.
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