
Do Mito à Razão
No que tange ao Ocidente, a Literatura, ou melhor, a poesia antecede o surgimento da Filosofia.

No que tange ao Ocidente, a Literatura, ou melhor, a poesia antecede o surgimento da Filosofia. De acordo com Carpeaux (2008), a base da Literatura grega é formada por um “cânone tradicional e invariável” constituído, principalmente, por poemas e epopeias ligados a um “poeta lendário”: Homero. Conforme Chauí (2002), Homero pode ser considerado o “pai fundador” da cultura grega, uma vez que “viveu entre o final da época micênica e o início do desenvolvimento histórico do mundo grego, legando para este último a contribuição de todas as civilizações que antecederam e instigaram o surgimento da grega” (p. 23). Entretanto, vale ressaltar que existem muitas conjecturas em relação a Homero.
Russell (1957, p. 30) afirma que “há um ponto de vista, bastante aceito, segundo o qual se trata de uma série de poetas, ao invés de um único indivíduo”. Nessa acepção, Ilíada e a Odisseia teriam levado cerca de duzentos anos para serem concluídas. Chauí (2002), por sua vez, prefere manter as duas possibilidades ao considerar Homero um “nome coletivo de vários poetas anônimos ou nome daquele que recolheu e reuniu toda a produção mítico-poética antiga” (p. 23). Contudo, estamos de acordo com o ponto de vista de Carpeaux (2008), que acredita se tratar de um único sujeito, por isso, afirma: “Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida. O nome de Homero tornou-se sinônimo de poeta [...] e o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu a unanimidade de opinião: Homero é o maior dos poetas” (p. 46).
No entanto, precisamos esclarecer que a poesia ocupava um lugar de prestígio e honra na civilização grega, totalmente diferente do lugar subalterno que ocupa hoje. Segundo Torrano (2014), antes da constituição da pólis e da adoção do alfabeto, havia apenas uma comunidade agrícola e pastoril. Nesse contexto, o poeta-cantor, conhecido como aedo, representava o auge da tecnologia de comunicação, e em consequência disso, detinha o poder. Desse modo, este grupo social transmitia, bem como conservava, toda a “visão de mundo e consciência de sua própria história (sagrada e/ou exemplar)” (p. 16) através do canto do aedo. Assim,
“Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia foi oral e foi o centro e o eixo da vida espiritual dos povos, da gente que — reunida em torno do poeta numa cerimônia ao mesmo tempo religiosa, festiva e mágica — a ouvia. Então, a palavra tinha o poder de tornar presentes os fatos passados e os fatos futuros, de restaurar e renovar a vida” (Torrano, 2014, p. 19).
Dessa forma, é possível notar que a poesia ocupava um alto patamar para os gregos. As epopeias de Homero faziam parte de um cânone fixo, ao qual era proibido o acréscimo de epopeias mais modernas. Atualmente, alguns clássicos da literatura são trabalhados nas escolas, como um incentivo à leitura/cultura, no entanto, salvo algumas exceções, isso é feito de maneira monótona e indiferente. Na Grécia, ocorria uma situação totalmente distinta: Ilíada e a Odisseia eram utilizadas como livros didáticos, que deveriam ser memorizados. As epopeias homéricas não eram simples obras literárias para os Antigos mas, sim, uma leitura obrigatória para os estudantes e o principal tema de discussão crítica entre os homens das letras.
Contudo, algo permanece imutável: a obra de Homero é de relevância indiscutível. Hoje, é exaltada por seu valor literário. Mas, na Antiguidade, era como uma verdadeira Bíblia, um Código. “Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas. [...] Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis” (Carpeaux, 2008, p. 46). A poesia não era apenas arte, era tradição, um discurso que não podia ser contrariado.
Isso porque Homero falava da humanidade. Assim, até mesmo os deuses eram dotados de fisionomias e imperfeições humanas. Eles sentiam fome, cansaço, amor, tristeza, alegria, dentre outras necessidades e sentimentos humanos. Nesse contexto, ainda segundo Carpeaux (2008), “A presença dos deuses homéricos, que são, por definição, ideais humanos, revela não só a condição humana, mas também a capacidade dos homens de superá-la” (p. 52), por isso, “O pathos heróico da Ilíada e a ética aristocrática da Odisseia são imagens ideais da vida, que exercem influência duradoura sobre a realidade grega” (p. 51).
Somente batalhas foram oferecidas pela tradição, mas Homero fez sua interpretação e destacou as vitórias de homens exemplares – que inspiraram indivíduos de diversos temperamentos e classes sociais. Desse modo, os gregos encontravam, nas epopeias homéricas, soluções para os seus dilemas morais. Então, a ética se sobrepunha ao conteúdo e até à arte. Por esse motivo, Carpeaux (2008) exaltou os textos homéricos, ao afirmar que
“Homero compreende tudo: sol e noite, tragédia e humor, universo grego inteiro, do qual é a bíblia e o cânone ideal. Cânone estético e religioso, pedagógico e político; uma realidade completa, mas não o reflexo imediato de uma realidade. Se Homero só fosse este reflexo, teria perdido toda a importância com a queda da civilização grega. Mas era já, para os gregos, uma imagem ideal; e não desapareceu nunca. O equilíbrio entre realismo e idealidade é o que confere aos poemas homéricos a vida eterna: a bíblia estética, religiosa e política dos gregos podia transformar-se em bíblia literária da civilização ocidental inteira. Homero parece situado fora do tempo” (p. 52-53).
Pisístrato reinou, com interrupções, de 560 a 527 a. C. Conforme Russell (1957), foi ele quem levou os poemas homéricos (em sua versão atual) para Atenas. “Dessa época em diante, os jovens atenienses aprendiam Homero de cor, sendo essa a parte mais importante de sua educação” (p. 30). Vale ressaltar que a religião foi representada, nas epopeias homéricas, através dos deuses do Olimpo. No entanto, longe de serem meros objetos de adoração, estavam ligados aos elementos obscuros e selvagens da cultura grega. Por isso, na perspectiva de Russell (1957):
“Deve-se admitir que a religião, em Homero, não é muito religiosa. Os deuses são inteiramente humanos, diferindo dos homens apenas quanto à imortalidade e por possuírem poderes sobre-humanos. Moralmente, nada se pode dizer em seu favor, e é difícil de compreender-se como podiam inspirar tanto pavor. Em algumas passagens, que se supõe posteriores, são eles tratados com uma irreverência voltairiana. O sentimento genuíno religioso que se encontra em Homero tem menos a ver com os deuses do Olimpo do que com seres nebulosos, tais como os Fados, a Necessidade e o Destino, aos quais o próprio Zeus tem de submeter-se. Os Fados exerciam grande influência sobre todo o pensamento grego, sendo talvez uma das fontes de que se derivou a crença nas leis da natureza. Os deuses homéricos eram deuses de uma aristocracia conquistadora, e não os úteis deuses da fertilidade daqueles que realmente amanhavam a terra. [...] Os heróis humanos de Homero não se comportam muito bem” (p. 31).
Esse rico legado de Homero, e suas explicações mítico-poéticas sobre o mundo e a vida humana, mais tarde inspiraram o surgimento de uma nova forma de ver e compreender a realidade: a Filosofia. Esse termo reúne as palavras “filo”, proveniente de “philía” cujo significado é amizade, e “sofia” que advém de “sophía” e significa sabedoria. Logo, Filosofia significa “amor à sabedoria”. Essa expressão é de autoria de Pitágoras de Samos, que considerava a sabedoria um bem exclusivo dos deuses. Assim, aos seres humanos só restaria o papel de amigos da sabedoria, ou seja, filósofos (por isso, “sophós” significa sábio).
Vários fatores foram determinantes para o surgimento da Filosofia, dentre os quais podemos citar: a invenção da moeda e do calendário, o aprimoramento de novas técnicas, bem como o advento de uma abastada classe de comerciantes que suplantou a antiga aristocracia agrária. Desse modo, a sociedade grega se tornou urbana e a cultura laica. Logo as explicações mítico-religiosas deram lugar à razão. Nesse contexto, nasceu a Filosofia, nas colônias gregas da Ásia Menor (na Jônia), entre o final do século VII a.C. e o início do século VI a.C. Tales, natural de Mileto, é considerado o primeiro filósofo. É importante ressaltar que a Filosofia possui, além de data e local exatos, um conteúdo definido: a cosmologia, que segundo Chauí (2002), é “uma explicação racional sobre a origem e a ordem do mundo, o cosmos” (p. 16).
Se por um lado, nas cosmogonias, a origem do cosmos é explicada com base nos mitos, seja por intermédio da personificação dos elementos naturais água, ar, terra e fogo (considerando-os como deuses, titãs, “pessoas”), seja por meio da relação sexual entre eles. Por outro, nas cosmologias, os filósofos propunham que as forças impessoais da natureza, isto é, a água ou o úmido, a terra ou o seco, o fogo ou o quente, o ar ou o frio, eram os princípios geradores e diferenciadores dos seres. Eles, assim como nos mitos, criaram tudo a partir de: sua força interna, forças externas ou, até mesmo, através da luta entre forças opostas. Assim, os primeiros filósofos removeram “o lado fantástico e antropomórfico que os mitos possuíam, mas permaneceram no mesmo quadro de questões que os mitos haviam proposto para a origem do mundo e das coisas” (Chauí, 2002, p. 35).
Foi Aristóteles quem reconheceu Tales como o fundador da Filosofia cosmológica, isto é, como o primeiro que tratou o problema da origem, mudança e conservação do mundo, de forma sistemática e racional. Conforme Heródoto, Tales de Mileto foi um dos Sete Sábios da Grécia arcaica. Sua “akmé” (ponto de maturação filosófica) está relacionada ao fato de ter previsto um eclipse solar. É válido salientar que a phýsis é um termo grego que simboliza a natureza primordial das coisas, a organização natural do universo e a energia essencial que vivifica os seres. “Para Tales, a phýsis é a água, ou melhor, a qualidade da água, o úmido” (Chauí, 2002, p. 55).
De acordo com Tales de Mileto, a água ou o úmido deu origem a todo o universo. Com essa afirmação, o primeiro filósofo se afastou do mito, que somente buscava o princípio gerador do mundo, a coisa primitiva que deu origem a tudo. A importância da teoria filosófica de Tales se encontra no fato de que ele questionou qual é o ser primordial (ou a qualidade) que fez surgir o universo, bem como continuou (e continua) gerando e transformando os seres e a natureza. Mas por que a phýsis seria a água ou o úmido? Os intérpretes acreditam que existiriam, pelo menos, cinco razões para essa escolha de Tales de Mileto. Em primeiro lugar, a água se apresenta sob diversas formas e estados (sólido, líquido e gasoso). Devido à evaporação, pode-se pensar que a água originou o céu e o que nele há; devido à chuva, que a água deu início à terra e ao que nela há.
Em seguida, o filósofo notou que a vida está diretamente vinculada à água, isso pode ser notado nas sementes, na umidade do sêmen animal e humano, e na putrefação dos cadáveres, que são úmidos, mas vão se ressecando. Além disso, Tales observou a importância do Nilo para o Egito, como a sequidão do deserto se transformava em terra fértil e verdejante, nos momentos de cheia do rio, assim ele teria chegado à conclusão de que a água deu origem às plantas. Se por um lado, a descoberta de fósseis de animais marinhos em grandes altitudes teria levado o primeiro filósofo a presumir que, no princípio, tudo era água e que a vida animal é proveniente da água. Por outro, “a mitologia grega falava no rio Oceano que circundava toda a terra e que teria engendrado nosso mundo. Não seria descabido, portanto, supor que Tales houvesse dado uma explicação racional para a narrativa mítica” (Chauí, 2002, p. 56).
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Uma das perguntas mais frequentes, no que diz respeito às origens da Filosofia, é: Por que a Filosofia nasceu na Grécia, no século VI a.C., nas colônias da Ásia Menor, justamente, na região da Jônia? Os estudiosos admitem que, pelo menos, três motivos foram importantes para o surgimento da filosofia na Jônia. O primeiro deles se refere às navegações e suas respectivas transformações técnicas, que levaram ao desencantamento do mundo, ou seja, literalmente, trouxeram à tona a necessidade de explicar racionalmente a realidade.
Já o segundo, destaca as invenções do calendário — que simboliza o tempo abstrato —, da moeda, que se trata de um signo abstrato utilizado em trocas, e da escrita alfabética (que nada mais é do que uma transcrição abstrata das palavras e do pensamento). Invenções essas que permitiram aos gregos o desenvolvimento de sua capacidade de abstração, dando espaço para a Filosofia. Esses motivos foram relevantes e não podem ser menosprezados ou esquecidos. No entanto, o principal fator foi a política, ou melhor, o nascimento da pólis (Cidade-Estado), uma vez que, com ela, desapareceu a figura do Mestre da Verdade (representada pelos poetas, adivinhos e reis de justiça), que antecederam os filósofos.
Mas o que é um Mestre da Verdade? Qual a sua importância para a Grécia arcaica? Os poetas (aedos, como Homero), adivinhos ou magos (profetas) e reis de justiça (sábios) eram considerados Mestres da Verdade pois seriam capazes de transcender as barreiras da realidade sensível e imediata das coisas. Eles teriam o poder de avistar o invisível, transitar pelo passado, prever o futuro e, até mesmo, ver o reino dos mortos. Eram homens inspirados, cuja fala é oracular. Porém, esses indivíduos não teriam somente o dom de ver, possuíam também o dom de fazer acontecer (inclusive magicamente), através da palavra. Ao falar, faziam acontecer aquilo que diziam. Por isso, eram o símbolo máximo da verdade.
Assim, a palavra dos poetas, adivinhos e reis de justiça era tida como mágica, visto que “quando o poeta canta, o passado se faz presente; quando o adivinho anuncia, o futuro se faz presente; quando o rei de justiça enuncia a justiça, cria a lei [...]. Não há distância entre falar e fazer, palavra e ação” (Chauí, 2002, p. 41). Por fim, o que esses homens têm em comum é o fato de pertencerem à seitas secretas, de iniciados. Sua fala é sagrada e tem poder porque está reservada somente a alguns indivíduos excepcionais, que possuem poderes religiosos.
Essas são as três figuras que representam o Mestre da Verdade e que irão, paulatinamente, desaparecer com o nascimento da pólis. A Filosofia surgiu no contexto da pólis, quando o discurso (lógos) passou a ser de caráter “público, dialogal, compartilhado, decisional, feito na troca de opiniões e na capacidade para encontrar e desenvolver argumentos que persuadam os outros e os façam aceitar como válida e correta a opinião emitida, ou rejeitá-la se houver fraqueza dos argumentos” (Chauí, 2002, p. 44).
Ao contrário do discurso dos guerreiros e políticos, a Filosofia não almeja apenas a argumentação e a persuasão, mas também deseja proferir a verdade como algo universal, essa pretensão foi herdada dos poetas, adivinhos e reis de justiça. Logo, o discurso filosófico compreende o conceito de verdade como algo que é igual para todos, desde que seja um pensamento desinteressado. No entanto, existe uma multiplicidade de opiniões, que variam constantemente. “Paradoxalmente, essa pretensão da Filosofia de ser universal, de encontrar o acordo entre as ideias e estabelecer a identidade entre as coisas e o pensamento se realizará como ideal inatingível, pois, de fato, será feita de desacordos e de oposições entre os filósofos” (Chauí, 2002, p. 45).
Portanto, a Filosofia surgiu no período arcaico, no instante em que as narrativas mitológicas já não conseguiam explicar, de modo satisfatório, a realidade. Assim, o discurso filosófico passou a ocupar essa função. Em compensação, os preceitos dos poetas e legisladores, no que tange aos valores e questões éticas e políticas, continuavam válidos, sem contestação, satisfazendo as necessidades cotidianas.
REFERÊNCIAS:
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. 3ª ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. vol. 1. 2ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HOMERO. Ilíada. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
______________. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
TORRANO, J. A. A. Introdução. In: HESÍODO. Teogonia. Estudo e tradução de J. A. A. Torrano. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2014.
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