COLUNA
Prof Michael Amorim
Michael Amorim é professor de filosofia, conferencista, podcaster pai e marido.
Prof Michael Amorim

Que é que você quer com a literatura? (Parte III)

Segundo de uma série de textos que busca mostrar que as personagens da literatura expressam mais que um mero devaneio: são modelos de vidas possíveis

Michael Amorim

Nunca fui do time do que leem apenas por diversão. Se nós tornamos responsáveis por aquilo que sabemos, uma vez que não existe conhecimento da verdade sem responsabilidade — verdade conhecida é verdade obedecida, diria Platão —, ler é assumir responsabilidade pelo que se lê.

Para que a leitura seja proveitosa é necessário uma leitura ativa, como ensina Morrer Adler em seu Como Ler Livros. O bom leitor é aquele que trava um diálogo íntimo com o livro.  Sem isso não somos mais que plagiários de orangotangos, incapazes de olhar para a relva e ver-se perdido como Robinson Crusoé; de imaginar-se, ao ser traído por um amigo, como Edmond Dantès traído por Fernand; de reconhecer as profundezas de uma mente inteiramente e verdadeiramente má como a do Conde Drácula de Bram Stoker. Quem não leu Shakespeare dificilmente saberá reconhecer as sutilezas demoníacas do ciúme, ciúme que levou Otelo, o mouro de Veneza, a tirar a vida da inocente, doce e apaixonada Desdêmona. 

Pode ser que a vida imite a arte, mas é certo que sem a arte não se saberá viver. As narrativas literárias são, por assim dizer, verdadeiros mapas para quem dispõe de uma única vida e tempo demasiado limitado para viver toda a gama de situações. Viver é sentir-se perdido, diria Ortega y Gasset, mas aquele que renegar o mapa estará um tanto mais perdido. 

Escreveu Eugen Rosenstock: 

“[…] há em nós uma mudez que espera tornar-se linguagem”. 

A cura para essa mudez não pode estar em outro lugar que não nos clássicos da literatura. Os literatos são como guias ou faróis que iluminam o caminho. São capazes de expressar o que sentimos, mas não sabemos dizer. E o fazem em diferentes estilos, sob diferentes formas e gêneros literários. Seja nas peças de Shakespeare, nos contos das Mil e Uma Noites ou nos romances de Dostoiévski, o literato põe na pena toda a gama de possíveis situações humanas. 

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Certa vez, tive o desprazer de ouvir da boca de um estudante de letras que a literatura não precisa falar à alma humana. Ora, se não fala à alma do homem, fala a quem? Ainda poderá servir para algo quando tudo que tem a oferecer são explorações banais de ideologias, situações artificiais e personagens nada verossímeis, estranhos ao nosso cotidiano e vazios de dramas humanos universais? Uma literatura que não reflete modelos de vida perdeu a razão de ser. Tornou-se panfletagem, retórica vazia, ou mero passatempo.

Os clássicos da literatura são clássicos justamente por narrar ao leitor algo mais que doutrinação —  doutrinar, e aqui não uso o termo de forma pejorativa, é papel da religião —, que fugas mentais da realidade, que sensações afloradas e emoções fortes: eles expressam situações humanas universais, capazes de serem reconhecidas por quem os lê e de elevarem a condição do leitor no momento mesmo da leitura. O leitor não vai a um clássico apenas para entreter-se com alguma história boba, não vai para aprender mais sobre seu país, entender os fatos da história e da sociedade e de sua cultura, vai, antes, para compreender a si mesmo, para tentar responder a pergunta crucial: “que é o homem?”.

O grande escritor inglês, G.K. Chesterton, escreveu sobre Shakespeare este magnífico parágrafo que servirá bem para a compreensão do que está sendo exposto aqui:

“Shakespeare conhecia então todo o tipo de modos de estar: podia exaltar um republicano em Plutarco ou um rei medieval, um pagão misantropo a amaldiçoar o mundo ou um franciscano alegre a reunir dois amantes, um deus dos oráculos gregos ou um duende dos bosques ingleses, um tolo alegre ou um intelectual louco — tudo sem os colocar em contraposição, sem pensar em qualquer conflito com a tradição, sem questionar se era clássico, modernista, tradicionalista, romântico, branco ou negro.”

Quando se lê dessa forma, Aquiles deixa de ser um personagem fictício e distante, existente só em nossas mentes, e passa a ser um esquema interpretativo do próprio mundo em que vivemos e das próprias decisões que tomamos. Emma Bovary, incapaz de buscar nos livros esquemas de interpretação de sua vida, usou os que encontrou como incentivo para distanciar-se da vida de mulher casada. Em vez de completar-se pela leitura de romances, fragmentou-se ainda mais. Entregou-se a uma vida dupla onde tudo se tornou falso e caricatural. Não compreendeu que se deve buscar, nas personagens, modelos. 

Heitor, Ulisses, Enéias, Anna Karenina, Sherlock Holmes, Scrooge, Brás Cubas e tutti quanti são mais que fantasia, são esquemas, chaves de interpretação de dramas observados ou vivenciados. Nesse sentido, quanto mais distante da alma humana for a obra, mais descartável ela é.

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