A banalidade do mal nos órgãos de persecução penal
Há alguns anos, li o livro “Nos passos de Hannah Arendt” e fiquei fã da pensadora, da coragem, da lucidez, da inquietação que ela carregava diante de sistemas que fingem normalidade enquanto produzem injustiça.
Há alguns anos, li o livro “Nos passos de Hannah Arendt” e fiquei fã da pensadora, da coragem, da lucidez, da inquietação que ela carregava diante de sistemas que fingem normalidade enquanto produzem injustiça.
A partir de então assisti ao filme “Hannah Arendt” que retrata o período em que a filósofa acompanha o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.
A experiência deu origem à sua obra mais controversa: “Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal” ocasião em que Arendt rompeu com a ideia de que o mal era praticado apenas por figuras monstruosas.
Eichmann, como ela revelou, não era um sádico, mas um burocrata obediente, alguém que seguia ordens, preenchia formulários, carimbava destinos.
O mais perturbador não era sua crueldade, mas sua incapacidade de pensar no outro. E é justamente esse tipo de conduta automatizada, sem reflexão, que me fez olhar para o nosso sistema penal com outros olhos e surgiram as minhas inquietações: até que ponto estamos realmente pensando no que fazemos com a vida do outro?
Será que a banalidade do mal também nos habita? Será que ela não aparece nos nossos protocolos diários, nas decisões automáticas, nos atos repetidos sem reflexão?
Será que a banalidade do mal também se manifesta quando uma toga é usada para decidir por instinto e não por prova? Quando o distintivo se acomoda ao “prende primeiro, apura depois”? Quando o brasão do Ministério Público chancela uma denúncia que repete o inquérito sem filtrar o que é juridicamente relevante?
Será que não estamos diante de um mal silencioso, aquele que se traveste de rotina institucional, que se esconde atrás de fórmulas jurídicas, mas se esquece da Constituição no momento mais crucial?
Há juízes que prendem “por segurança”, mesmo sem os requisitos legais.
Há promotores que denunciam por receio de deixar passar um possível culpado, ainda que o inquérito seja frágil.
Há delegados que indiciam sem investigar a fundo e dizem: “deixo que o MP decida”.
Todos esses atores, à sua maneira, reproduzem um comportamento burocrático que Arendt tão bem descreveu em Eichmann: o de quem abre mão de pensar, de avaliar criticamente o que está fazendo com a vida do outro, não por crueldade, mas por conveniência. Não por maldade, mas por costume.
O medo da crítica social tem moldado, silenciosamente, muitas decisões. Exemplos? Temos!
Tem delegado que conduz inquéritos com foco na vítima, mas sem zelo com a prova, por receio da pauta de gênero.
Tem promotor que prefere oferecer denúncia fraca a correr o risco de arquivar um caso com apelo midiático.
Tem juiz que evita absolver, mesmo diante da dúvida, para não ser acusado de leniência com o agressor.
Quando isso acontece, o Direito deixa de ser técnico e passa a ser reativo. E aí, todos se protegem com a mesma desculpa: “estou apenas cumprindo minha função".
O processo penal exige coragem. Coragem de pensar, de enfrentar a pressão social, de aplicar a Constituição inclusive quando ela protege quem incomoda.
O que temos visto, não raras vezes, é uma justiça criminal que se acovarda diante do barulho, que decide por instinto, por medo, por conforto e que transfere a responsabilidade para o outro, como se o mal maior fosse ser criticado, e não cometer uma injustiça.
A reflexão de Arendt segue atual. Ela não acusava um monstro, ela denunciava a ausência de pensamento. Aquele mal que nasce da repetição, da inércia, da escolha por não se responsabilizar.
Hoje, não precisamos de grandes atrocidades para provocar dor, basta um indiciamento apressado, uma denúncia sem filtro, uma prisão que ignora a Constituição, tudo isso, feito por gente comum, dentro de um sistema que parou de se interrogar.
Quem investiga, denuncia e julga sem pensar, como um burocrata que apenas opera, não está tão distante de um Eichmann da vida, e isso é perigoso.
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