O 10 de novembro, 340 anos da execução de Beckman
O episódio continua a despertar reflexões sobre o preço da resistência, a construção da identidade maranhense e os riscos enfrentados por aqueles que ousaram desafiar a ordem metropolitana em nome da justiça e da dignidade dos colonos.
Manoel Beckman, português de origem judaica — filho de pai alemão e mãe portuguesa — chegou a São Luís em 1662, aos 24 anos. Seis anos depois, em 1668, já era vereador da cidade. Numa colônia ainda incipiente, marcada por dificuldades econômicas e tensões entre colonos e metrópole, Beckman viria a liderar a primeira revolta brasileira contra Portugal: a célebre Revolta de Beckman, de 1684.
O movimento — impulsionado pela insatisfação com a Companhia de Comércio do Maranhão e com a atuação dos jesuítas — buscava garantir o abastecimento, a mão de obra e a autonomia dos colonos. Sob sua liderança, os revoltosos expulsaram os jesuítas, depuseram as autoridades locais e assumiram o poder por cerca de quinze meses, até que forças enviadas de Lisboa restabelecessem a ordem e punissem exemplarmente seus líderes.
Mas quando e onde exatamente morreu Beckman, o Bequimão, como era conhecido no Maranhão?
Os manuais de História costumam fixar a data de sua execução em 2 de novembro de 1685, dia de Finados — uma tradição que remonta ao registro feito por João Francisco Lisboa em seu célebre Jornal de Tímon (1852). Lisboa que provavelmente teve acesso a Carta de Gomes Freire de Andrada (1685), a qual vamos mencionar mais a diante, deve ter confundido na transcrição paleográfica “des” com “dos”. O erudito cronista maranhense, considerado o “príncipe dos historiadores brasileiros”, localizou o suplício de Beckman em uma praia de São Luís, diante do Beco da Trindade, área então conhecida como Praia do Armazém, depois chamada Praia da Trindade — um espaço hoje ocupado pela Praça e o monumento piramidal que homenageia o mártir, a Pirâmide de Beckman (1910).
Entretanto, o dia 2 de novembro traz uma incongruência histórica: não se executavam prisioneiros no Dia de Finados durante o período colonial. Essa contradição, por muito tempo ignorada, foi corrigida apenas no século XX, graças ao historiador maranhense Milson Coutinho, em sua obra A Revolta de Bequimão (1984), publicada no tricentenário do levante. Coutinho teve acesso a um documento inédito e decisivo: uma carta enviada pelo governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrada – e não Andrade –, ao Conselho Ultramarino, datada de 15 de novembro de 1685, na qual o próprio governador relata a execução dos líderes rebeldes.
Essa carta, que trazemos aqui integralmente, é uma das mais importantes provas documentais sobre o episódio, pois corrige oficialmente a data da morte de Beckman: 10 de novembro de 1685.
CARTA DE GOMES FREIRE DE ANDRADA AO CONSELHO ULTRAMARINO (15 de novembro de 1685)
“Senhor.
Como o principal motivo com que V. Mgª foi servido mandar-me a este Estado foi o de sossegar a alteração em que os moradores desta cidade de São Luís estavam em desserviços de V. Mgª, e castigar os cúmplices nela; tendo logo que cheguei dado cumprimento ao sossego, fazendo restituir a obediência tudo ao que tinham faltado, como por outras vias dei conta a V. Mgª, a dou por esta de que em dez deste mês de novembro (grifo nosso) se fez execução de morte natural na forca em Manuel Bequimão e Jorge de Sampaio de Carvalho, por se achar serem os mais culpados para o castigo, e os mais poderosos para o exemplo.
Foram também condenados em perdimento de seus bens para a Coroa Real. Com doze se fez açoitar pelas ruas públicas Belchior Gonçalves [...]. ”
Assim, a forca de Manoel Beckman ergueu-se não no dia de Finados, mas no dia 10 de novembro de 1685, à beira-mar, diante do que hoje é a Beira-Mar de São Luís, nas proximidades do monumento que perpetua sua memória.
Passados 340 anos da execução do líder da primeira revolta nativista do Brasil, o episódio continua a despertar reflexões sobre o preço da resistência, a construção da identidade maranhense e os riscos enfrentados por aqueles que ousaram desafiar a ordem metropolitana em nome da justiça e da dignidade dos colonos.
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