Artigo

(Des)Controle

Jean Nunes *

Atualizada em 11/10/2022 às 12h15

Tenho para mim que a principal causa de conflito num lar é o controle remoto. Mais especificamente sua localização. Felizes éramos quando ele vivia grudado no próprio aparelho (televisor, ar-condicionado, videocassete etc.) Ali, não tinha titubeio e nem atrito. O desavisado que resolveu arrancá-lo de lá deveria ter combinado antes com os casais.

Ao menos, deveria ter sido proibido naquelas casas onde ele possa ficar ao alcance dos braços humanos. O bichinho sofre. Anda pelas gavetas, divide espaço com o pão, dorme debaixo da cama e se refugia junto da escova de dente. Isso quando não se esconde na casa do vizinho. Um pária. Exposto a tantos riscos, sofre com os hematomas e fraturas que fazem parte de sua rotina. Não há fita isolante que dê conta.

Aqui em casa, claro, não é assim... É um pouco pior. Mas já identifiquei a razão. Tenho um senso de localização ainda incompreendido por aqueles que convivem comigo. Não é que eu seja uma pessoa desorganizada. Apenas me entristeço quando os objetos, existentes ao meu redor, permanecem sempre no mesmo lugar, empalhados. Tenho a impressão de que lhes falta vida, movimento, mudança.

Isso sem falar na dificuldade que tenho de resistir ao olhar de piedade que as próprias coisas me lançam, como se pedissem socorro para tirá-las da inércia. O controle remoto é expert nisso. Compadeço-me de sua tristeza ao vê-lo sofrendo daquele jeito... E, se cedo, não é em homenagem à bagunça, mas por pura solidariedade ao sofrimento alheio. Tanto é verdade que sei exatamente onde o deixei. Está junto da carteira de vacinação do Dandan, perto da máquina de lavar, ao lado da ração dos gatinhos, na área de serviço – indico com a precisão de um GPS. Se lá ele não está, não é culpa minha, nem da memória, mas de alguém que não me compreende e tirou o objeto sem me avisar. Que culpa tenho?

No meu caso, a situação se agrava porque Dona Lili, ao passar a viver conosco, trouxe a sua “ordem natural das coisas”. Ela vem de uma época – ainda não tenho certeza se é de uma época ou de outro mundo que se trata – em que para cada coisa há um lugar específico. No seu universo, é inconcebível que o controle remoto esteja junto do cartão de vacinação, ao lado da ração. Ora, mas que mal tem isso? Povo implicante! Tem que está tudo separado, classificado, etiquetado. Um Apartheid seria um eufemismo.

Não é só. O controle precisa estar perfeitamente posicionado a noventa e cinco graus de longitude oeste, com a proa virada para o Atlântico, grudado no encaixe fixado na parede, à inclinação perpendicular, apontando para o Cruzeiro. Nem seria o problema se a “ordem” dela conflitasse apenas com a minha. Tem também a do Fofinho. O caso dele é mais grave. Ele passa o dia usando a própria patinha para enxotar o infeliz do controle. Isso quando não sai mordendo o objeto, como se estivesse diante do mais suculento gafanhoto.

Com as imperfeições desses dois, consigo conviver. Problema enfrento com a da minha esposa. Algo peculiar. Ela guarda tudo tão bem guardado, que perde o controle, inclusive o emocional. Enfia, sabe-se lá onde, e sai a acusar, de desorganizado e bagunceiro, o primeiro que ela encontra pela frente. E não é o Fofinho e nem minha sogra que costumam ser os primeiros que ela vê. Ainda se irrita quando tento convencê-la de que não fui eu que o deixei num saco preto na lata de lixo ou que a geladeira não é um ambiente acolhedor para um controle remoto desagasalhado.

Perdida a paz e achado o objeto, o desafio é decidir quem assumirá o controle.


* Defensor público estadual, titular do Núcleo de Direitos Humanos da DPE-MA, mestre em Políticas Públicas (UFMA) e professor da UEMA

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