Engenharia em Colapso: O Preço da Negligência no Brasil
O Brasil enfrenta uma grave crise na engenharia. Dados apresentados pela Exame apontam uma redução de 44,5% nas matrículas em cursos presenciais de engenharia nas universidades particulares [1].
O Brasil enfrenta uma grave crise na engenharia. Dados apresentados pela Exame apontam uma redução de 44,5% nas matrículas em cursos presenciais de engenharia nas universidades particulares [1]. Esse cenário reflete a fragilidade do sistema educacional brasileiro, evidenciada pelos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) de 2023. Com uma média de apenas 379 pontos em Matemática, o Brasil ficou 93 pontos abaixo da média dos países da OCDE (472). Comparado a países como México (395 pontos), Estados Unidos (465), Coreia do Sul (527), Japão (536) e Singapura (575), líder do ranking, a situação brasileira se torna ainda mais preocupante [2]. O país ocupa a 65ª posição entre 81 nações avaliadas, um resultado incompatível com seu status de 9ª maior economia mundial em 2023 [3].
Os resultados do PISA evidenciam ainda as profundas deficiências do sistema educacional brasileiro, especialmente no ensino de Matemática, matéria essencial para a formação em qualquer modalidade da engenharia. Mesmo entre estudantes brasileiros com maior poder aquisitivo, o desempenho ficou abaixo da média internacional, muito aquém do apresentado por alunos em países como Vietnã e Turquia. Esses dados revelam que os problemas não estão restritos a um estrato social, mas refletem questões estruturais que afetam todo o sistema educacional.
Nos últimos dez anos, tragédias associadas à engenharia, como o incêndio na Boate Kiss (242 mortes) [6], os rompimentos das barragens em Mariana (19 mortes) [7] e Brumadinho (252 mortes) [8], o desabamento do Viaduto Guararapes (2 mortes e 23 feridos) [18], e o incêndio no CT do Flamengo (10 mortes) [9], resultaram em 525 vidas perdidas. Esses eventos expõem os riscos de práticas inadequadas e reforçam a necessidade de que apenas profissionais qualificados e habilitados realizem atividades de engenharia.
Mais recentemente, o desabamento da Ponte Juscelino Kubitschek de Oliveira, que conecta Aguiarnópolis, no Tocantins, a Estreito, no Maranhão, trouxe novamente à tona a urgência do tema da manutenção, inspeção e segurança de equipamentos, instalações, obras e serviços de engenharia. A ponte, inaugurada em 1960, desmoronou em 22 de dezembro de 2024, deixando até o momento duas mortes confirmadas e oito desaparecidos [19,20,21]. Este trágico episódio ilustra a gravidade dos desafios enfrentados pela engenharia no Brasil.
Além desses problemas, observa-se a abertura indiscriminada de cursos de engenharia, muitos deles em modalidade a distância (EAD) e com mensalidades de R$ 298,99 [22] ou R$ 348,69 [23], valores que se afiguram, em tese, incompatíveis com um curso de padrão médio levando-se em conta a alocação de recursos técnicos, equipamentos e de corpo docente qualificado. Não se debate aqui a importância do ensino à distância, mas esses indicativos levantam questionamentos sobre a viabilidade de manter infraestrutura laboratorial e corpo docente qualificado, fundamentais para a formação em engenharia. A regulamentação desses cursos e a fiscalização pelo Ministério da Educação (MEC) são essenciais para evitar que a busca por lucro comprometa a qualidade da formação em áreas de alto risco à segurança e saúde das pessoas. A volta da periodicidade anual do ENADE, que atualmente ocorre em ciclos trienais, seria uma medida importante para monitorar continuamente a qualidade dos cursos e permitir ações corretivas em tempo hábil. O intervalo atual pode retardar intervenções necessárias, comprometendo a formação dos alunos e a segurança pública.
No Brasil, a regulamentação da engenharia é de responsabilidade do Sistema CONFEA/CREA/Mútua, amparado pelas Leis nº 5.194/1966 e 6.496/1977. O registro no CREA e a emissão da Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) são obrigatórios para combater o exercício ilegal da profissão, garantir rastreabilidade e delimitar as responsabilidades técnicas dos profissionais das engenharias. Contudo, os CREAs têm limitações no seu poder de polícia, que se volta, em regra, para a aplicação de sanções administrativas, quais sejam, advertência reservada, censura pública, multas, suspensão e cancelamento do registro, sem poder de embargar obras ou serviços que representem risco iminente à segurança.
Nos Estados Unidos, a regulamentação é descentralizada e conduzida por conselhos estaduais sob supervisão do NCEES (National Council of Examiners for Engineering and Surveying). Para atuar como engenheiro profissional (Professional Engineer - PE), é necessário cumprir requisitos rigorosos como graduação em curso acreditado pela ABET, aprovação em exames como o FE e PE, e experiência supervisionada. O licenciamento é obrigatório para assumir responsabilidade técnica, com exigência de educação continuada para renovação.
Em Portugal, a regulamentação é centralizada pela Ordem dos Engenheiros de Portugal (OEP). O exercício da profissão exige inscrição obrigatória, validação da formação acadêmica, estágio supervisionado e, em alguns casos, exames complementares. A OEP também promove formação continuada e integra o Acordo de Washington, facilitando a mobilidade profissional em países signatários.
A comparação destaca que enquanto os Estados Unidos e Portugal possuem mecanismos rigorosos para formação, licenciamento e fiscalização, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos, como a ausência de exames de suficiência e limitações no poder de fiscalização do Sistema CONFEA/CREA/Mútua. Reformas estruturais, como a ampliação das prerrogativas dos CREAs para embargar obras e a implementação de um exame nacional de suficiência, são urgentes para garantir padrões mais elevados de segurança e qualidade de equipamentos, instalações, obras e serviços de engenharia.
É inadiável também priorizar investimentos nos ensinos fundamental, médio e superior e fortalecer a fiscalização das atividades de engenharia. Mais do que desenvolver o Brasil, precisamos superar as fragilidades no ensino e prática nas diversas modalidades das engenharias visando à missão maior de edificar construções eficientes e sólidas e proteger vidas. Fica o convite à reflexão: que medidas tomaremos para reverter esse cenário de negligência e riscos antes que seja tarde demais?
Artigo elaborado em colaboração com o Adv. José Lucas Medeiros Guimarães, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR) da UFMA e com Nagib Duailibe, Engenheiro Civil, Bel. em Direito e Mestre em Ciência Jurídica (Univali/SC) / Coordenador da Comissão de Orçamento e Tomadas de Conta do CREA-MA.
Fonte:
[1] Engenharia brasileira em crise: as razões por trás da falta de profissionais, disponível em https://exame.com/carreira/engenharia-crise-falta-profissionais/
[2] Até alunos mais ricos no Brasil estão abaixo da média global em Matemática, aponta Pisa, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2zx819rg4o
[3] FMI lista as 20 maiores economias do mundo em 2023; veja posição do Brasil, disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/fmi-lista-as-20-maiores-economias-do-mundo-em-2023-veja-posicao-do-brasil/#:~:text=Brasil%20%E2%80%93%20US%24%202%2C13,M%C3%A9xico%20%E2%80%93%20US%241.81%20trilh%C3%A3o
[4] RESOLUÇÃO MEC/CNE/CES Nº 2, DE 24 DE ABRIL DE 2019
[5] LEI Nº 5.194, DE 24 DE DEZEMBRO DE 1966.
[6] G1 Rio Grande do Sul, 27/01/2021
[7] G1 Minas Gerais, 05/11/2020
[8] Costa, Gilberto. Agência Brasil, 09/11/2019
[9] G1 Rio de Janeiro, 08/05/202019
[10] Anuário Estatístico de Acidentes de Origem Elétrica 2024 ano base 2023
[11] Conselho Nacional de Licenciamento de Engenheiros e Agrimensores, disponível em https://ncees.org/
[12] Conselho de Acreditação para Engenharia e Tecnologia, disponível em https://www.abet.org/
[13] LEI Nº 8.906, DE 4 DE JULHO DE 1994.
[14] DECRETO-LEI Nº 9.295, DE 27 DE MAIO DE 1946.
[15] LEI Nº 12.249, DE 11 DE JUNHO DE 2010.
[16] Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR) da UFMA, disponível em https://sigaa.ufma.br/sigaa/public/programa/apresentacao_stricto.jsf?lc=pt_BR&idPrograma=1161
[17] Antônio Garcez defende instalação de mangueiras transparentes em postos de gasolina, disponível em https://www.camara.slz.br/antonio-garcez-defende-instalacao-de-mangueiras-transparentes-em-postos-de-gasolina/
[18] Desabamento do Viaduto Guararapes, em BH, completa três anos, disponível em https://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/desabamento-do-viaduto-guararapes-em-bh-completa-tres-anos.ghtml
[19] Ponte Juscelino Kubitschek de Oliveira, disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ponte_Juscelino_Kubitschek_de_Oliveira
[20] Mototaxista de 42 anos é a segunda vítima de desabamento de ponte que liga o Maranhão ao Tocantins, disponível em https://imirante.com/noticias/estreito/2024/12/22/mototaxista-de-42-anos-e-a-segunda-vitima-de-desabamento-de-ponte-que-liga-maranhao-ao-tocantins
[21] Oito pessoas seguem desaparecidas após desabamento de ponte entre Maranhão e Tocantins, disponível em https://imirante.com/noticias/estreito/2024/12/22/oito-pessoas-seguem-desaparecidas-apos-desabamento-de-ponte-entre-maranhao-e-tocantins
[22] Engenharia Civil – Bacharelado, disponível em https://www.anhanguera.com/curso/engenharia-civil/
[23] Engenharia Elétrica, disponível em https://graduacao.uninassau.digital/nossos-cursos/engenharia-eletrica/38/60/2
[24] Conceito Preliminar de Curso (CPC), disponível em https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/indicadores-de-qualidade-da-educacao-superior/conceito-preliminar-de-curso-cpc
[25] Member Licensing Board Directory, disponível em https://ncees.org/about/member-licensing-board-directory/
[26] Ordem dos Engenheiros de Portugal, disponível em https://www.ordemdosengenheiros.pt/pt/
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