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COLUNA
Félix Alberto
Félix Alberto é poeta e jornalista.
Félix Alberto

Quando Chico Buarque bateu um bolão em São Luís

Foi no dia 7 de fevereiro de 1988, um domingo, que o artista fez a sua última apresentação na capital maranhense.

Félix Alberto

Poucas vezes o cantor e compositor Chico Buarque esteve no Maranhão. Sabe-se que o aniversariante de hoje passou por São Luís no início da década de 1970 com a turma do Pasquim, e algum tempo depois andou pelos bares da Praia Grande bebendo tiquira na companhia de João do Vale. Mas foi no dia 7 de fevereiro de 1988, um domingo, que o artista fez a sua última apresentação na capital maranhense.

Era o show Francisco, dirigido por Naum Alves de Souza, que vinha de uma longa temporada no Canecão, no Rio de Janeiro. Um espetáculo para não se esquecer. Estávamos experimentando os primeiros anos da redemocratização: nas universidades falava-se de incerteza e o fim das utopias, o rock nacional embalava as pistas da juventude, as ruas pulsavam com movimentações de sindicatos e greves e o país estava a poucos meses de ganhar a sua Constituição Cidadã. 

No Espaço Cultural, casa de eventos dirigida pelo Grupo Mirante, Chico abriu a noite cantando Desalento e Rita para uma plateia de quase cinco mil pessoas. Francisco, o LP lançado em 1987, trazia como carro-chefe a canção O Velho Francisco (uma crônica de Chico Buarque sobre um ex-escravo que já idoso rememora suas desventuras), a música de encerramento do show. Segundo o próprio compositor, O Velho Francisco serviu de inspiração para o romance Leite derramado (Companhia das Letras, 2009). 

Mas, no meio de tudo, o público maranhense foi presenteado com muitas pérolas do farto repertório de Chico. Com o Mestre Marçal ele dividiu o microfone cantando Sem compromisso e Partido alto. Batucou na caixa de fósforo e ensaiou um rebolado desenxabido antes de engatar o Samba do grande amor. E logo enveredou por uma sequência mais intimista com Gota d’água e As vitrines

Depois, segundo registrou o jornalista Pergentino Holanda, no jornal O Estado do Maranhão, Chico Buarque incorporou o cronista feminino em clássicos como Suburbano coração (“Se enroscam persianas/Louças se partirão/O amor está tocando/O suburbano coração...”), Palavra de mulher e Todo o sentimento. E fez dueto com Marisa Fossa cantando o bolero Iolanda.     

Chico cantou As minhas meninas, para falar da relação com suas músicas, suas criaturas femininas, desvalidas, malandras, politizadas, suburbanas. E convidou ao palco Vinícius Cantuária para interpretar com ele Ludo real e Sílvia, o tempero pop da noite no Espaço Cultural. E cantou mais – Acorda amor, Estação derradeira, Rio 42, O que será (À flor da pele) e João e Maria – até desaguar num bis esticado como festa de Carnaval com Não existe pecado ao sul do Equador e Vai passar

E passou! E se passaram mais de três décadas daquele show. Era um Chico Buarque no auge de seus 43 anos, prenhe de inventividade e entusiasmo no palco. E uma plateia em estado de graça.    

Lembrar de um show que o tempo não apaga é uma forma de reverenciar os 80 anos do artista que encanta e continua embalando os sonhos de muitas gerações. Eu estava lá. Viva Chico Buarque! 

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Abaixo, transcrevo texto do meu irmão Antônio Carlos Lima, publicado no jornal O Estado do Maranhão do dia 10 de fevereiro de 1988, em que ele descreve a passagem de Chico Buarque por São Luís, do palco ao campo de futebol e a travessia para Alcântara. 

Um Chico vitorioso e feliz

Antônio Carlos Lima

Ao contrário de Joana, da velha canção, que errou na dose e errou no amor, Chico Buarque, seu criador, começou o ano de 1988 com o pé direito. E, desde a temporada bem-sucedida do show Francisco, no Canecão carioca, até sua fulgurante passagem por São Luís, neste começo de semana, ele só tem somado acertos. Acertou na dose de emoção ministrada ao seu público fiel; acertou no amor sem limites que, num repertório digno de antologia, cantou durante mais de uma hora, na noite de domingo.

Segunda-feira, plenamente refeito do desgaste físico provocado pelo show no Espaço Cultural, depois de uma viagem no catamarã ‘Mariana’ a Alcântara, Chico lidera uma versão desajeitada de seu time Politheama, no Anil, enfrenta o aparentemente imbatível combinado local e, numa jogada de craque, marca um dos dois gols que lhe garantem a vitória. Duas horas depois, ao lado da mais ardente torcedora, sua mulher Marieta Severo, tripudia sobre os adversários, durante jantar no restaurante Varanda, no Monte Castelo. Fernando Sarney, autor do gol do combinado, replica, jurando que seu time fizera corpo mole em homenagem ao compositor.

Chico, sorriso aberto, exibe um ar triunfante e debochado e pede confirmação de suas jogadas à mulher e às duas filhas, Sílvia e Luiza, que, à maneira de Terta, de Chico City [referência à personagem da antagonista de Chico Anysio, em programa da TV Globo], respondem em coro: “Verdaaaade…”.

Se é bom de bola ou não, que o diga Nacor Arouche, que apita a pelada e, por conta de sua polêmica arbitragem, é 

esculhambado em campo, como todo juiz brasileiro que se preza. A verdade é que se Chico Buarque fosse bom em jogadas como o é na música, o rei do futebol não se chamaria Pelé. Como qualquer peladeiro, ele grita com os adversários, reclama dos companheiros (berra contra Airton Abreu e César Roberto, dá pitos no roqueiro Vinícius Cantuária, Perfeito Fortuna, Cláudio Popó e Fernando Belfort, elogia os passes de Toinho) e não poupa a mãe do juiz.

Uma galera nervosa, composta por Ronald Pinheiro, a atriz Cristina Aché, Tetê Murad, Marieta Severo, Lucialice Sarney, Pergentino Holanda, José Aniesse, Deco Soares, Tutuca e Heitor Heluy, acompanha a performance, de olhos esbugalhados. O combinado local não perde em nervosismo: Luís, Chico Carvalho, Alim Maluf, Tininho, Alex Brasil, Carlos Eduardo, Ernane Sarney, os compositores Chico Maranhão e Gerude suam a cântaros e, ofegantes, tentam, inutilmente, segurar o empate, até que Vinícius faz o segundo gol para o time de Chico. 

Encerrado o jogo, o autor de Carolina se comporta como craque vencedor: distribui autógrafos mil a dezenas de crianças que gritam seu nome nas laterais do gramado.

O homem está em paz com a vida. Na tarde de segunda-feira, ele é dos primeiros a chegar ao late Clube, na Ponta d'Areia, para aguardar o catamarã comandado pelo lobo do mar Zacarias. No barzinho de Fernando Lameiras, ele exalta o sabor da Cola Jesus, um refrigerante exclusivo de São Luís, que descobriu há 15 anos. As velas são içadas para o início de uma pequena aventura. Destino: Alcântara.

Compenetrado, Chico aboleta-se com Marieta e as duas filhas no lugar menos recomendado para quem desconhece os segredos da Baía de São Marcos: a cesta de nylon que fica no centro do catamarã. Meia hora depois, defronte à Ilha do Medo, a maresia mostra-lhe que deve procurar lugar mais seguro. Ondas de mais de três metros arremessam contra o barco e molham o grupo, que, para espantar o medo, canta em coro um velho sucesso. De Chico, naturalmente: "Madalena foi pro mar/Eu fiquei a ver navios...”. Perfeito Fortuna, Cristina Aché, o produtor Naum Alves de Souza e Vinicius Cantuária parecem não estar nem aí.

A chegada a Alcântara, o deslumbramento inicial, o cansaço da longa caminhada a pé pela ladeira íngreme do Beco do Jacaré. São quatro horas e, após um sol abrasador, vem a fome incontrolável, fome de leão. Os restaurantes estão fechados. Chico conduz as filhas pelo braço, separa-se do grupo e diz que vai à luta. Dez minutos depois, ele chega com a boa notícia: na casa de Josias dos Santos, na rua Direita, ele consegue peixe frito com camarão seco. A hora do rango é uma festa. Chico sorri satisfeito: dá alimento a quem tem fome e água a quem tem sede. A noite está chegando quando todos decidem enfrentar o mar novamente, de volta para casa. A pelada os espera.

Foi bom o passeio? Gostou de São Luís, de Alcântara, do futebol, do peixe frito, dos novos amigos? Chico olha para o céu iluminado e deixa escapar um sorriso quase tímido. "Sabe, estou muito feliz". E está mesmo.

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