(Divulgação)
COLUNA
Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

Kintsugi

Falamos sobre a arte japonesa de recuperar tigelas quebradas com ouro.

Allan Kardec

 
 

Um querido amigo retornou do Japão. Ele me relatou a grande experiência de visitar aquele país, que para mim é um lugar longe e perto, saudoso e presente. Relatou, em cores vivas – similar àquela das cerejeiras em primavera de abril – a sua experiência singular.

Aquela conversa me recordou muita coisa que guardo em algumas caixas que nunca abri. São algumas memórias e experiências que talvez não tenha compartilhado tanto quanto gostaria. Aprendi na vida a testemunhar e guardar. Relatar quando oportuno e penso que talvez hoje seria mais um dia para compartilhar alguma experiência e, claro opiniões. Antes de tudo, peço que fique à vontade de discordar de tudo que falo abaixo.

Há dois aspectos que me chocam na análise do Japão por nós brasileiros. Talvez até mesmo do Oriente. O primeiro, óbvio, é nós usarmos nossa “régua” para medir a cultura oriental. Para mim me parece alguém que conhece muito de manga e opina sobre melancia. 

A nossa formação, na minha visão, se fundamenta nos ensinamentos de Aristóteles, há mais de dois milênios. Esse filósofo esteve na China, no Japão, na Índia? Pelo que li, não. A formação daqueles países se fundamenta em muitos grandes filósofos, mas citaria, em particular, Confúcio, Buda ou, talvez, a literatura presente nos Vedas. Não entendo como alguém usaria os conceitos e premissas do Ocidente, de nossa formação, para analisar os irmãos do Oriente.

Falo isso porque muita gente me fala que admira a disciplina e a “busca por perfeição” japonesa. Para isso, trago um aspecto bem conhecido naquele país, que é o “Kintsugi”. 

Kintsugi é uma antiga arte japonesa de reparar cerâmica quebrada com uma mistura especial de laca e ouro, prata ou platina. A técnica não só conserta fisicamente os objetos, mas transforma suas imperfeições em características destacadas e belas, celebrando suas falhas ao invés de escondê-las. Essa abordagem traz profundas ressonâncias com experiências humanas e espirituais, oferecendo várias lições valiosas.

No século 15, o xogum Ashikaga Yoshimasa enviou uma de suas tigelas de chá chinesas favoritas - objetos indispensáveis para a cerimônia do chá - de volta à China para serem reparada após quebrarem. O método de reparo usado foi rudimentar, envolvendo grampos de metal, o que desagradou Yoshimasa.

Buscando uma solução mais estética e respeitosa, artesãos japoneses desenvolveram então uma técnica – que ganhou o nome de Kintsugi - que usava ouro e laca para consertar a cerâmica, não apenas restaurando sua utilidade, mas também destacando as rachaduras, criando uma nova forma de beleza.

Nessa nova técnica, as visíveis cicatrizes douradas transformam sua essência estética, evocando o desgaste que o tempo impõe sobre as coisas físicas, a mutabilidade da identidade e o valor da imperfeição. Assim, ao invés de ocultar as linhas de fissura, as peças tratadas com aquele método revelam as marcas de seu passado, ganhando uma nova vida. Elas se tornaram únicas e, por isso, adquirem uma beleza e intensidade singulares.

Enfim, Kintsugi é um conceito estético que valoriza a beleza encontrada na imperfeição e na transitoriedade das coisas. É uma visão que enfatiza a aceitação do ciclo natural de crescimento e decadência, apreciando a simplicidade rústica, a quietude e a modéstia – e reconhecendo que as cicatrizes podem ter tintas de ouro a refletir maturidade.

Ao contrário da busca por beleza perfeita e permanente, o Kintsugi reconhece a elegância no efêmero e no imperfeito, como aquela rachadura na cerâmica ou o desvanecer das cores numa folha de outono. Ela encoraja a contemplação da impermanência da vida e sugere que há uma profundida beleza na aceitação serena e natural das contrariedades – algo muito presente no espírito japonês.

*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.


 


 

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