Vida simples
Ao ler essa obra, passei a especular intimamente que, quiçá, os que amealharam riqueza e/ou projeção sejam tão felizes, quanto quem preferiu uma vida mais simples.
Noutro dia escrevi um artigo que intitulei “Almas Mortas”, valendo-me da obra, do
mesmo nome, de Nikolai Gogol. Agora me socorro do mesmo autor, mas utilizando outra obra: “O
Capote”.
Só para recordar, Gogol é um escritor russo, do início do século XIX, cujo estilo
literário foi copiado por Dostoiévski. Por ai já se consegue entender o alcance da sua obra e a
relevância na literatura clássica mundial.
Em “O Capote”, Gogol nos apresenta Akaki Akakiévitch, um obediente funcionário
público, feliz com a sua rotina “fordista” diária e sempre tentando dar o melhor de si em tais tarefas,
mesmo se considerarmos, ontem e hoje, como maçantes: ele simplesmente copiava documentos.
Acontece que Akaki era vítima de constante bullying por parte dos colegas de trabalho.
Era tido como esquisitão, seja por não interagir com os demais, limitando-se a chegar na repartição,
abaixar a cabeça e fazer o seu trabalho de copista; seja por vestir-se sem muito esmero.
Sobre a questão da vestimenta, o casaco de frio que usava estava tão surrado que rendia
todo tipo de gozação dos colegas. Na verdade, o casaco invernal era chamado de capote justamente
pelas características precárias, que não permitia ser nominado como uma “capa”.
Inobstante, Akaki foi mais uma vez ao alfaiate, quando o inverno batia à porta, para
realizar novos remendos, mas não obteve êxito: o alfaiate se negou a colocar mais um remendo no
capote, sob a justificativa de que o tecido não aguentaria a costura. Sem outra solução, reuniu todas
as suas economias e adquiriu uma belíssima capa. Observem bem, Akaki não adquiriu apenas uma
nova capa, para lhe proteger do inverno, mas sim uma capa cara e deslumbrante, que esgotou todas
as suas economias. Resultado? Reconhecimento público, tapinha nas costas e convite para uma
grande festa.
A história é longa, e vou direto naquilo que interessa: o capote foi roubado, quando
Akaki, numa rua mal iluminada, retornava da festa, tendo o mesmo vindo a óbito dias depois, como
tudo leva a crer, de tristeza pela perda da reluzente capa.
Vejam, um homem simples, feliz com aquilo que se predispôs a fazer no serviço público
– a despeito de muitos acharem uma tarefa menor – e sem preocupações em ostentar uma
vestimenta exuberante, resolve agradar aos demais e acaba perdendo o que de mais importante
tinha: a vida.
Muitos – principalmente os que conseguiram galgar espaços de poder ou obtiveram
destaque nas profissões exercidas –, talvez não entendam porque alguns optaram por ter uma vida
que, nas suas perspectivas, é desprovida de ambição. Aqui não me refiro àqueles que não tiveram oportunidades de alcançar algum destaque. Refiro-me a quem, mesmo com todas as oportunidades,
optou por levar uma vida simples.
Ao ler essa obra, passei a especular intimamente que, quiçá, os que amealharam riqueza
e/ou projeção sejam tão felizes, quanto quem preferiu uma vida mais simples. Aqueles, por vezes,
podem ser compelidos a manter uma vida mais complexa simplesmente para serem aceitos pela
grei, como mal fez Akaki.
Acho que quem complica tudo somos “nós” e, confesso, tenho inveja dessa
simplicidade.
“Nós”, do Judiciário, somos incompreensíveis para a maioria das pessoas no momento
em que, para um mesmo fato, produzimos decisões diferentes, a depender da perspectiva do
julgador. “Nós”, do Legislativo, que representamos o povo, e que, a despeito da delegação conferida
pelo voto, deixamos de levar a plebiscito temas como aborto e liberação da maconha, por exemplo,
causando perplexidade e preocupações, quando é sabido que, na maioria dos países democráticos, a
decisão passou por esse tipo de consulta. Ou “nós”, do Executivo, nos tornamos extremamente
complicados quando insistimos em manter a fórmula educacional cujo fracasso é comprovado pelos
testes internacionais de proficiência em matemática e interpretação textual, quando poderíamos
adotar opções baseadas em evidências já testadas e de comprovado sucesso mundo afora.
Esse homem simples , que escolheu deliberadamente não complicar a vida, olha para
tudo isso e não entende. Na sua simplicidade, as soluções são clarividentes.
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