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Coluna do Sarney
José Sarney é ex-presidente da República.
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De pernas para o ar

Quando eu nasci, em 1930, o Mundo já se encontrava num período de mudanças aceleradas. Acompanhei as maiores transformações do século 20, e Deus me deu a oportunidade de ver as deste começo de novo século.

José Sarney

Quando eu nasci, em 1930, o Mundo já se encontrava num período de mudanças aceleradas. Acompanhei as maiores transformações do século 20, e Deus me deu a oportunidade de ver as deste começo de novo século. 

A maior delas foi a da comunicação. É claro que ela sofrera o primeiro choque no Egito, como conta o famoso diálogo entre Sócrates e Fedro, em que o Deus Thoth traz ao rei a escrita e escuta a terrível interrogação: “Mas o que será da memória”? Demorou muito tempo até chegarmos ao que se chamou Galáxia Gutenberg, e eu não sairei dela, mas já vejo os códigos indecifráveis da internet se fechando em torno de nós e acabando com a questão que criara a filosofia: o que é a verdade. Podemos ter entrado no tempo da verdade fake, mas eu ainda ficarei grato a Thoth por nos ter permitido ler Cervantes e Camões e Pessoa e Guimarães Rosa e — grande “E” — o Evangelho, aprendendo que no começo era o Verbo. 

Eu não tinha nenhuma ideia do que era a eletricidade. Fiquei surpreso quando, em 1937, vi em São Luís um bonde sem burros que o puxassem. A Light já começara a explorar a energia elétrica do Parnaíba do Sul e logo jogaria a água sobre Cubatão, enquanto em Paulo Afonso fazíamos grande o pioneirismo de Delmiro Gouveia. Acompanhei de perto a ideia de Itaipu, inaugurei várias de suas turbinas e o sistema de transmissão em corrente contínua que permitiu que a energia chegasse às grandes cidades do Sudeste. Sinto-me responsável pelo complexo hidrelétrico do São Francisco. Essas obras nos permitiram ter um dos sistemas de geração mais limpos do mundo, embora o combustível fóssil venha se insinuando, mesmo quando a geração eólica é mais barata.

Em Pinheiro e São Bento já chegara um derivado de petróleo, o querosene. Só em São Luís descobri que o Mundo rodava sobre rodas. Fora em meados do século 19 que começara a exploração real do petróleo. O século 20 começara com o automóvel, e as cidades se reformataram sobre ele. Ter petróleo se tornou essencial para ser rico. Foi difícil encontrar o nosso óleo, mas na Venezuela, dominada pelos americanos, ele surgiu logo — e a PDVSA, a 5ª maior empresa de petróleo do mundo, hoje é um calo nas mãos deles. Só na metade do século 20 criamos a Petrobras. Quando eu era Presidente da República a empresa estava madura, mas tinha dificuldades para o novo passo, pois os americanos barravam a venda de supercomputadores. Foram os que consegui que asseguraram o sucesso do Programa para Águas Profundas, do Pré-Sal que o Presidente Lula pôde acionar e é fundamental para nossa autonomia. 

Não notávamos que o Mundo estava pagando um preço gigantesco com as mudanças climáticas, que têm como principal causa o uso dos combustíveis fósseis. Quando começamos a nos preocupar — eu mesmo, que fizera o primeiro chamamento pela ecologia no Parlamento, em 1972, não tinha ideia do que acontecia —, e fizemos a Rio-92, já a mudança necessária era para ontem. Mas, na pressa do mundo, o acionamento do freio tem sido lento. Precisamos parar o motor fóssil do Mundo: para fazê-lo, seguir o acordo possível, infelizmente limitado, de Paris — e isso parece impossível, tornando o fim da Humanidade uma previsão sombria com que temos que dormir todos os dias. 

Mas a Terra é cheia de surpresas. Se pesquisa o combustível padrão ouro, o hidrogênio. Está em todo lugar. Será a nova energia. Se sua fonte é limpa, chamamos de hidrogênio verde. O Brasil é pioneiro, tem um enorme espaço pela frente. Mas agora surge, correndo por fora, atropelando como no surfe, o hidrogênio branco. É o hidrogênio — na realidade o di-hidrogênio, H2, a menor das moléculas, tão pequena que pode atravessar o aço — em fontes naturais. Começam a ser exploradas, ainda experimentalmente, jazidas na França, nos Estados Unidos, na Austrália, em outros países. Já as encontramos aqui no Brasil e temos tempo de partir na frente. As reservas estimadas durariam milênios. No Mali, na cidadezinha de Bourakébougou, o hidrogênio limpo já é usado para produzir energia barata, um ponto — 7 kW — na imensidão, mas que terá um lugar na História. 

Os desafios ainda são enormes. Ele não virá como os poços de petróleo que derramavam pelos campos do Oklahoma, virá com perfurações cuja tecnologia ainda está amadurecendo. Teremos desafios com estocagem, gasodutos, distribuição. O di-hidrogênio é inflamável, põe inflamável nisso, basta lembrar — é imagem de cinema — o incêndio do zepelim Hindenburg, causado por mistura com ar que não devia acontecer; mas andamos todo dia sobre motores a explosão que não matam ninguém por explosão. Ainda temos muito o que fazer no desenvolvimento dos motores e de toda a cadeia industrial. Há problemas a resolver com metano e ozônio. Ajuda a indústria petrolífera, inclusive a Petrobras, ser pioneira na pesquisa do que substituirá os combustíveis fósseis e já olhar o H2. 

Felizmente temos esse gás que vira água para nos lavar de nossos pecados econômicos. 

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