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COLUNA
Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

A descolonização da Amazônia Brasileira

Falamos sobre os processos de descolonização científica.

Allan Kaderc

Atualizada em 29/08/2023 às 15h53
 
 

Um estudo publicado na revista Cretaceous Research em dezembro de 2020 causou rebuliço na comunidade paleontológica. O trabalho detalhou uma espécie de dinossauro batizada como Ubirajara Jubatus, marcando o primeiro dinossauro descoberto no Hemisfério Sul que apresentava possíveis antecessores das penas atuais. Embora o fóssil, com 110 milhões de anos, tivesse sido descoberto no Brasil há muitos anos, nenhum paleontólogo brasileiro estava ciente de sua existência. O estudo foi conduzido por pesquisadores da Alemanha, México e Reino Unido.

Esse incidente destacou o que muitos pesquisadores começaram a chamar de colonialismo paleontológico - uma prática em que cientistas de países ricos coletam espécimes de nações de baixa e média renda, sem o envolvimento de pesquisadores locais, e posteriormente armazenam os fósseis fora do país de origem. 

De grande relevância, o episódio motivou paleontólogos e associações de toda a América Latina a se unirem contra a prática. A publicação do estudo sobre o Ubirajara Jubatus gerou grande indignação. Através da campanha #UbirajaraBelongstoBR no Twitter, pesquisadores brasileiros protestaram contra o artigo, que acabou sendo retirado, e exigiram a devolução do fóssil. O crescente movimento também chamou a atenção de cientistas da Mongólia e de outros países afetados pelo colonialismo paleontológico.

Uma das consequências desse movimento foi a publicação de artigos que investigam a extensão do colonialismo paleontológico na América Latina e em outros locais. Em março, um relatório revisou décadas de estudos descrevendo fósseis do México e do Brasil. Os autores analisaram cerca de 200 estudos publicados entre 1990 e 2021, e descobriram que mais da metade não incluía pesquisadores locais. Em relação aos fósseis brasileiros descritos, 88% estavam armazenados fora do Brasil.

O fóssil foi devolvido esta semana pela Alemanha e vai ser exibido no museu em Santana do Cariri, no Ceará, próximo ao local onde foi encontrado. Na foto (abaixo), publicada pela revista Nature, a ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos o exibe, já de posse dos brasileiros. 

Na foto, publicada pela revista Nature, a ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos exibe o fóssil devolvido ao Brasil
Na foto, publicada pela revista Nature, a ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos exibe o fóssil devolvido ao Brasil

O fato é que, embora o colonialismo formal tenha terminado na maioria das partes do mundo no século XX, o pensamento c

olonialista continua a influenciar muitos aspectos da sociedade global contemporânea, incluindo relações internacionais, economia, cultura, educação e muito mais. Por exemplo, pode ser visto na maneira como certos grupos de pessoas ou regiões são percebidos e tratados, ou na distribuição desigual de recursos e poder.

O colonialismo também envolve a ideia de "outro", que considera as culturas dos povos colonizados como exóticas, primitivas, selvagens ou inferiores. Isso tem sido usado para desumanizar as pessoas colonizadas e legitimar sua exploração e subjugação. Um dos aspectos mais degradantes do colonialismo é justamente a pirataria e – no caso da Amazônia, a biopirataria.

Existem várias plantas originárias de terras indígenas que foram patenteadas e exploradas dentro e fora do Brasil, incluindo andiroba, ayahuasca, castanha do Brasil, pequiá, jambu enquanto outros nomes foram usurpados internacionalmente tais como o açaí e o cupuaçu. A iniciativa partiu de nações ricas, que se defenderam usando diversos argumentos, obviamente, os mais inaceitáveis possíveis.

Por isso, em 2006, tomamos a iniciativa de criar a primeira rede de pós graduação do Brasil, a Rede Nordeste de Biotecnologia (RENORBIO), que é um programa interinstitucional envolvendo todos os estados do Nordeste. A ideia de criar a RENORBIO surgiu da necessidade de aproveitarmos os conhecimentos populares locais, e usá-los em favor do desenvolvimento econômico e social de nossa região. 

Fizemos esse movimento publicando teses, artigos, livros, patentes e estudos técnicos para que nos apropriássemos daquilo que estrangeiros tinham percebido como valor estratégico: as nossas exuberantes flora e fauna. Na região Norte, foi criada a rede BIONORTE, com o mesmo objetivo. O resultado foi a formação de 1000 doutores para a região do Arco Norte! A educação é que vai garantir soberania ao povo Amazônida.

Por isso, já prevendo a celeuma histórica que o Brasil hoje vive em torno da exploração do petróleo em nossas áreas é que, há cinco anos, iniciamos a criação da Rede Amazônia Azul: o maior agrupamento de cientistas, professores e pesquisadores sobre a Margem Equatorial do Brasil! Fazem parte dela pesquisadores da UNIFAP, UFMA, UFPA, UFF, UFRJ, UEMA, UERN, UFJF, UFES, REMANOR, UNIVALI e TAMAR, portanto composta de entidades locais e outras com tradição na área.

O debate tem de ser posto e colocado de forma científica! Afinal, a alegação de uma das maiores vozes contra a Margem Equatorial é que a decisão do Ibama foi “técnica”. Se isso for verdade, nós seremos a voz da Ciência esclarecendo, dentro de nossas possibilidades, todos os aspectos envolvidos, inclusive o contraditório reforço da pobreza do Povo Amazônida a que essa política condena, enquanto eles propagam o estranho discurso da “internacionalização” da Amazônia Brasileira.

Na Audiência Pública chamada pela Câmara dos Deputados, no último dia 14, mostramos um aspecto em particular que gostaria de dividir com o nosso leitor: o retrato de hoje das terras colonizadas da Guiana, Suriname e Guiana Francesa e seus respectivos colonizadores. Por exemplo, o IDH e o PIB, dos mesmos, que mostro abaixo.

 
 

Igualmente, segue o retrato das empresas que hoje atuam na Guiana e Suriname. Dê uma olhada, por favor, e veja se encontra alguma da África ou da América do Sul. 

 
 

Agora, perceba que estão lá empresas estadunidenses e europeias, com destaque para a francesa TotalEnergies. É bom lembrar que, em 2017, a França aprovou a Lei 2017-1839, que determinou o fim da pesquisa e exploração de hidrocarbonetos, proibindo novos contratos de exploração de gás e petróleo, e o encerramento de toda e qualquer atividade do setor no país e seus territórios até 2040. Ou seja, os guianenses franceses não podem explorar petróleo em seu mar territorial, mas interessantemente a empresa pode fazê-lo em outros países.

A luta para que tenhamos voz nas decisões nacionais que nos afetam os Amazônidas segue adiante – o Brasil precisa escutar seu povo! A Ciência é desestabilizadora da História: ela lança luzes onde há um aparente consenso, destrói convicções e nos convoca a entender a importância da defesa dos povos, inclusive sua descolonização.

*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.


 

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