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COLUNA
Ibraim Djalma
Ibraim Djalma é procurador federal
Ibraim Djalma

Hermes e a Democracia

Inicialmente incumbido de ser o protetor dos rebanhos, Hermes tinha como função também a de intermediar as vontades dos deuses aos homens. Portanto, de interpretá-las.

Ibraim Djalma

Na mitologia, o Deus Hermes foi um dos mais venerados pelos gregos.

Apresentado em várias versões, esse Deus das sandálias voadoras era chamado de Mercúrio pelos romanos e é mais conhecido por ter ajudado Perseu a matar a Medusa, aquela mulher do cabelo de cobras.

Mas tem uma de suas tantas versões que mais me intriga. A que deu origem à palavra Hermenêutica, mais conhecida como a arte de interpretar.

Inicialmente incumbido de ser o protetor dos rebanhos, Hermes tinha como função também a de intermediar as vontades dos deuses aos homens. Portanto, de interpretá-las.

Interessante, necessário, mas perigoso.

Desde a origem das civilizações, principalmente no mundo ocidental, as vontades divinas expressadas sempre precisaram da figura um intermediador e, claro, de um destinatário. Nós.

Logo se viu, então, que Ele ditava todas as regras aos homens; sua moral, seus destinos e toda sorte de limites e direcionamentos, em que pese a tentativa de se resguardar um mínimo de livre arbítrio aos mortais.

O certo é que o cenário ali criado evidenciava uma vulnerabilidade muito perigosa: a total dependência de um só interpretador para tudo.

A depender de seu caráter, Hermes então poderia ser a salvação dos homens ou seu calvário.

Mas com o tempo, outros deuses surgiram e outros foram desaparecendo, inclusive ele.

Hermes passou. Mas a necessidade de interpretar as vontades divinas, principalmente os textos dos emissores continua mais forte do que nunca.

O que mudou foi apenas o titular da intermediação, porque agora os homens são quem interpretam seus próprios textos.

Então, é aqui que entra a democracia. 

A divinizada democracia que parece ser atemporal ganhou ombros tão largos que hoje é usada para qualquer coisa. Para casos republicanos de alternância de poder, para garantir o Estado de Direito e até mesmo para defender ela dela mesma. Se é que me entendem.

Mas antes de falar sobre a arte de interpretar e a democracia, é preciso saber que ela não foi tão venerada assim durante a maior parte da existência das sociedades civilizadas.

Sua raiz é remetida aos gregos que, diga-se, davam direito de voto e participação na vida política somente aos atenienses, o que não passava de 30% da população.

Então ela divagou flertando com vários Estados no decorrer dos séculos até ganhar notoriedade somente após as Duas Grandes Guerras Mundiais. 

Ou seja, essa fortaleza incontestável que incrementamos ao conceito de democracia é coisa de pouquíssimo tempo atrás. 

E talvez por ser tão recente na proporção que hoje atribuímos é que se suspeita que tenhamos embebedado seus intérpretes.

 A dificuldade encontra dois degraus. Primeiro saber quem é o responsável entre os homens para interpretar e executar a democracia e, segundo, saber o que realmente ela significa.

Sob a perspectiva jurídica, é dada aos Tribunais a responsabilidade de interpretar as leis, o que se inclui no bolo, por assim dizer, os preceitos democráticos. Isso os torna os intérpretes do seu conceito, porém não exclui os Poderes Executivo e Legislativo da mesma atribuição. E nem a doutrina, diga-se de passagem.

Mas o perigo de se repetir a vulnerabilidade grega está em se permitir interpretações ilimitadas aos mensageiros de agora, utilizando a democracia como mecanismo de controle e, paradoxalmente, de seu próprio extermínio.

Para isso, os homens então se resguardaram de Constituições e das mais diversas leis, tentando regular quase todas as relações sociais possíveis. 

Aparentemente esse muro de textos normativos foi a ferramenta que os mortais encontraram para limitar a liberdade subjetiva interpretativa dos intermediários da vez. 

Só que, independente de qualquer posição política, os hermeneutas de hoje podem perceber que os limites impostos pelas leis não são capazes de evitar a divindade dada outrora a Hermes, enxergando o termo polifacetado da democracia como mecanismo de justificativa de quaisquer decisões tomadas, sejam democráticas ou não.

E aí a sociedade sem notar pode voltar ao cenário grego, com os homens subservientes ao deus intermediário de botas voadoras que dá sentido às expressões ditadas por outros deuses na forma que quiser, sem ter sequer um único mortal capaz de reprová-lo.

E assim como os atenienses, nos restará apenas acreditar que o caráter dos Hermes deste século sejam pela salvação e não pelo calvário da sociedade, interpretando a democracia da forma menos ateniense possível.

 

 

 

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